Boletim – Radar

O Radar lança o ano de 2024 com uma convidada muito especial: a escritora, editora, educadora e militante Helena Silvestre. Esse é mais um capítulo de uma interlocução iniciada com Helena em 2022, por ocasião das Jornadas da EBP-Rio e do ICP-RJ, e que nos encanta desde então.

Naquele momento, o assunto girou em torno do “Notas sobre a fome”, um livro imperdível. Dessa vez, foi a mais recente obra de Helena que surgiu em nosso Radar: “Cochichos de amor e outras Alquimias”, lançado pela Txai (link abaixo). Fortíssimo, o romance narra a história de Luzia, essa jovem que “desejava mais liberdade que aquela que lhe davam” e que, no início da narrativa, foge de casa com apenas 17 anos de idade.

Gravada no apagar das luzes de 2023, nossa conversa fluiu pelos múltiplos lugares aos quais o livro nos leva: a luta por terra e moradia, a experiência amorosa entremeada ao ímpeto da militância, os paradoxos da família que apoia e viola… Como sempre, aprendemos com Helena Silvestre sobre o balanço entre o desejo radical de liberdade e aquele de se envolver profundamente com pessoas, causas e lugares.  E há tanto disso também em sua Luzia, “com um pé em cada canoa, como alguém que carrega as esquinas dentro de si”.

https://txaieditora.com/produto/cochichos-de-amor-e-outras-alquimias/

03 | Psicanálise e ciência, com Adriano Aguiar e Marcelo Veras

Rodrigo Lyra conversa com Adriano Aguiar e Marcelo Veras

A questão da relação entre psicanálise e ciência foi central para Freud e assim se manteve desde então. Ao longo de mais de 120 anos, tanto a prática científica quanto a psicanálise passaram, naturalmente, por grandes transformações.

Uma dimensão estrutural parece, no entanto, se manter: a psicanálise é impensável sem o giro científico da civilização, mas seus conceitos e sua práxis não se conformam ao método experimental.

Como pensar essa tensão nos dias atuais? De que maneira encarar os persistentes ataques à psicanálise que tomam por base sua suposta não cientificidade? Com que ciência é possível produzir parcerias? Essas e outras perguntas são
abordadas pelos nossos convidados deste episódio, os psicanalistas e psiquiatras Marcelo Veras e Adriano Aguiar, ambos membros da Escola Brasileira de Psicanálise.


Referência bibliográfica
Milner, Jean-Claude. Clartés de tout
de Lacan à Marx, d’Aristote à Mao. Paris: Verdier, 2011.

Radar – Marina Morena Torres conversa com Daniele Menezes, Geisa de Assis e Jefferson Nascimento

Neste episódio do Radar, a conversa partiu das ressonâncias de um evento realizado pela Diretoria de Biblioteca da Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Rio de Janeiro acerca do livro “Tornar-se negro ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social”, de Neusa Santos Souza, publicado originalmente em 1983.

Para tratar das discussões propostas pelo livro de Neusa, mas também no intuito de dar um passo a mais e englobar outras discussões que estão em pauta na área atualmente, convidamos à conversa os psicanalistas Geisa de Assis, Daniele Menezes e Jefferson Nascimento.

Os convidados abordam a relação entre psicanálise e racismo, perpassando as temáticas de raça, branquitude, identidade, política e clínica, em uma leitura baseada nas especificidades da cultura brasileira.

Apresentação Radar

Do que acontece na cidade, muita coisa concerne aos psicanalistas. Mais ainda em um tempo e em um lugar como os nossos, que caminham tantas vezes em direção ao pior. O que Freud aprendeu e ensinou sobre a subjetividade vale igualmente para o esforço conceitual da psicanálise: as alteridades mais relevantes são, na verdade, internas.

Ligar nosso Radar não é, portanto, um movimento secundário e recreativo, mas sim um gesto primário e constitutivo; nossas teorias e nossas práticas são permanentemente informadas pelas trocas com o que pulsa em nosso território.

Canções, imagens, filmes, exposições, textos e tantas outras produções culturais sempre foram nossos aliados, mas alguns nos tocam mais diretamente, por provocarem aberturas de um jeito afim à experiência do inconsciente. Deles nos serviremos, não como analogias, nem como exemplos, mas como lições para prosseguir no rastro de Freud e de Lacan, ainda que por novos caminhos. 

Coordenação: Rodrigo Lyra Carvalho

Equipe:

  • Daniele Menezes
  • Jefferson Nascimento
  • Lourenço Astua de Moraes
  • Marcus André Vieira
  • Marina Morena Torres

II – 01 | Letícia Cesarino

Para lançar uma nova temporada, o Radar conversou com Leticia Cesarino, professora no Departamento de Antropologia da UFSC, sobre seu livro “O mundo do avesso: verdade e política na era digital”, publicado pela UBU em 2022.

 

“Atrator estranho de Edward Lorenz”ra lançar uma nova temporada, o Radar conversou com Leticia Cesarino, professora no Departamento de Antropologia da UFSC, sobre seu livro “O mundo do avesso: verdade e política na era digital”, publicado pela UBU em 2022.

É um livro fundamental para acessar diversas chaves de leitura e novas perspectivas sobre o que está ocorrendo conosco e à nossa volta. Leticia aborda os profundos efeitos de desestruturação e instabilidade que temos testemunhado em nossa sociedade, causados ou ao menos acompanhados pela incidência das ferramentas digitais. Tudo isso com foco importante na dimensão política e nos chamados regimes de verdade. O livro narra a experiência de uma quebra generalizada de confiança nas instituições tradicionais e de uma profunda perturbação de fronteiras que mantinham apartados campos distintos, como o público e o privado, civil e militar, jurídico e político, fato e ficção.

Ao lado dessa descrição, há uma leitura estrutural e cibernética, uma série de múltiplos recursos conceituais para elucidar como a arquitetura das plataformas digitais impactam, política, saber, subjetividade. Os pontos de contato com a psicanálise são muitos: nos interessam as novas estruturas coletivas sendo criadas, novas realidades de assimetria entre sujeito e Outro, impasses distintos no acesso o que é diferente, estranho, êxtimo, além de uma série de perguntas sobre outros modos de manifestação do que pode autêntico na experiência individual com o corpo e com a linguagem.

Abaixo, uma lista hiper sintética de pontos que nos tocaram:

  1. Este livro é uma “produção liminar” em sintonia com seu objeto, as redes;
  2. As redes digitais são um objeto que põe em crise o conhecimento linear;
  3. Para o livro, foi preciso coragem e Bateson, com sua ecologia da mente;
  4. Trata-se de uma mistura de paradigmas (não apenas analogias);
  5. Letícia Cesarino: “Não sei se algum dia farei outro livro como esse”;
  6. Quais reestruturações estariam em curso?;
  7. Entre “cisma” e “platôs”, há uma dialética em jogo;
  8. “Sonhei que Bateson ia me dar a saída”;
  9. Uma nova Gestalt que só estará clara mais adiante;
  10. Entre as gramáticas lineares e as sistêmicas, temos que ficar com as duas;
  11. Nas redes, é preciso competir com as camadas intermediárias;
  12. Na seara política, disputar sim, mimetizar, não;
  13. O “intelectual orgânico” de hoje é o que está no ambiente digital e usa o algoritmo a seu favor;
  14. É preciso uma nova maneira de ler as oposições entre esquerda e direita; por exemplo, universalismo e particularismos;
  15. É preciso ganhar tempo para que uma nova composição para a esquerda se dê;
  16. Pode-se explorar as margens das plataformas.

No Umbigo da Noite (Com Flávia Cêra e Eliane Dias)

(conversa a partir do conto “Na vastidão, o céu da noite” de Itamar Vieira Junior – leia aqui – imagem do episódio de Flavio Pessoa)

Em toda história que se conta, há silêncio. Nem todo o vivido pode passar para o dizer. Às vezes, o que se experimenta é por demais insuportável e banido. Outras vezes, será esquecido apenas por não ter cabimento. A vida é assim: se escreve, também, pelo não-dito.

Não-ditos nunca são apenas feitos de vazio. São detalhes enigmáticos: um pequeno gesto de mão perdido no ar, um sorriso quase triste, o som de uma bofetada do outro lado da porta, um olhar de cumplicidade. Continue lendo “No Umbigo da Noite (Com Flávia Cêra e Eliane Dias)”

Que liberdade? (com Adriano Lourenço e Luis Rodrigues)

O psicanalista tende a se ver em exterioridade com relação à cidade – como se pudesse erigir seu consultório em um lugar atópico, o de um intelectual estrangeiro, por exemplo. Age como aquele que estaria sempre em outro mundo, ou ainda em um espaço zen, extraterritorial, termo de J. Lacan para ironizar esse ponto de onde o analista assistiria ao mundo, nos domingos da vida.

Apesar disso, porém, na prática analítica não há como estar de fora. O material que se apresenta nas histórias que nos contam os analisantes não tem unidade o bastante para estabilizar de modo firme um dentro-fora. Afinal, dos personagens de minhas narrativas em análise, quais fazem parte de mim? Quem é propriedade de minhas memórias? Apenas os que conheci? Ou devo incluir os parentes, mesmo os de gerações passadas de quem só ouvi falar? E os personagens marcantes de ficção lida, ouvida ou assistida? Dito de outro modo, quais as fronteiras de minha cidade psíquica? Estamos bem distantes da ideia de um porão ou baú de memórias em que ainda se teima em meter o inconsciente freudiano. Continue lendo “Que liberdade? (com Adriano Lourenço e Luis Rodrigues)”

Pajubá e a Fulô de Lalíngua

Quantas línguas há na nossa língua mãe? Além daquela do pai, da norma culta; e a da mãe, de ternuras ancestrais, há ainda, muitas mais, muito mais no cristal da língua, nesse mosaico em constante mudança que nos constitui. Nele, cabem até mesmo os brados raivosos dos paranoicos no poder. Boas mesmo são as línguas que trazem fragmentos de um passado perdido, de indefiníveis certezas. Somos transportados a uma zona da memória impossível de localizar. São elas que habitam a tendência irresistível para alguns de fazer, de uma flor, fulô e para outros, para quem flor é flor, ainda assim de bater com o pé no chão quando ouvem “pisa na fulô, pisa na fulô…

 Que memória é essa? A mesma que Proust nos leva a sentir, mesmo não tendo ideia do que seja uma Madeleine. Basta mergulhar nossos fragmentos sonoros no caldeirão da língua quando dizemos, meu dengo, meu araçá.

Para Freud, a memória não tem fim. Melhor, não tem limites. A ideia de um estoque finito, como pensa a neurologia, mostra seu caráter de ilusão quando a mesma ciência não cessa de destacar como as conexões neuronais são incontáveis por se fazerem e refazerem sem cessar. Freud não se interessa pelo arquivo morto. Que nossa biblioteca de memórias seja enorme, de acordo. Mas o que conta, o que desperta e faz sonhar são as memórias do esquecido. Valem as que não se encaixam no verbo da cidade, andarilhas errantes, mais neuras que neuros.

Para tudo que não coube na língua pública e nem na privada, mas apenas ficou como ressonância, ritmo, cor, Lacan inventa um nome, fazendo cantarolar sua langue com o termo lalangue. Na nossa língua um tanto dessa vibração se vai, mas que seja, digamos em português lalíngua. É com ela que em última essência lida o psicanalista ao fazer os fragmentos de história fora da história de cada um falar.

Quanto de alfabestização é preciso para que falemos em bom português, valorizando os encontros consonantais em chiados e erres prolongados? Quanto se encolhem nossas vogais quando dizemos “dentro de mim” em vez de “dendimim”? “Muito prazer” em vez de “ôba!” e assim por diante?

Nessa distância entre lalíngua e a língua oficial brotam dialetos. Vivi um deles por anos, o dialeto médico, com seu jargão entre radicais gregos e latinos, tendo um termo para qualquer evento a fim de evitar que o paciente saiba que dele falam como de uma coisa. De “hanseníase” para lepra ou do atual “cuidados paliativos” para fim de linha, o jargão médico sempre me deu a impressão de um modo pretensioso de esconder a morte ao preço de uma mortificação da linguagem.

Esse número do Radar do analista cidadão busca o encontro com outro dialeto, quase o avesso daquele do médico, o pajubá. É o dialeto dos trans e de sua rua, reinjetando lalíngua na língua oficial, sexualizando a linguagem e falando a seu modo da vida e da morte.

A ideia partiu de Maricia Ciscato, mais especificamente de seu encontro com as falas de Amara Moira que é, ela própria, ponto de encontro entre o pajubá a experiência trans da rua, prostituta que é ao reverberar na ponta de sua língua, tanto o pajubá das ruas quanto, em sua tese de doutorado, as onomatopeias de Joyce.

Conversando com Maricia e com Veridiana Marucio, vimos como podemos aprender com o pajubá um modo de articular passado, presente, interdito e dito e, talvez, alguma coisa do que ocorre em nossa clínica se ilumine por ele. Basta que se ouça Amara em pajubá para que sejamos transportados a essa periferia da língua em que localizamos nosso trabalho e onde ecoam os terreiros, talvez de modo próximo e distinto daquilo que Lélia Gonzalez chama de pretuguês.

Além do dialeto médico, tenho vivido há um bom tempo no lacaniano. A trama de palavras pacientemente tecida por Lacan ao longo dos anos para nos levar o mais próximo do calor dos acontecimentos, pegou muita friagem no caminho ao vir para nossas terras, não apenas perdeu sabor, mas ganhou uma ossatura que mimetiza demais a do francês, nos levando a dizer coisas estranhas como “da ordem de…”, ou “objeto pequeno a” com a maior naturalidade. Meus votos são os de que esse Radar abra os ouvidos dos que usam os termos de Lacan como usavam os médicos de meu passado, para a força e virulência que tinham em seu tempo, como os termos do pajubá têm, hoje, no nosso. 

Continue lendo “Pajubá e a Fulô de Lalíngua”

A madame saiu: Lélia Gonzales e a subversão do sujeito

 Conversa com Danielle Menezes e Geisa de Assis, que pode ser ouvida em:

Como resgatar uma história não apenas perdida, mas sobre a qual incidiu um silenciamento radical? Radical, por visar todo um mundo de gente fadada à exploração e à inexistência. E como minar esse racismo estrutural que segue vigente nos corações e corpos de todos nós? Lélia Gonzales o faz “numa boa”, como diz. Não é exatamente uma ação revolucionária, no sentido de sonhar com a substituição de uma estrutura nefasta por outra melhor. Também não busca a destruição desse mundo, mas muitas vezes produz sua mudança por dentro, que Lacan chamou de subversão. A subversão se faz pelas falas de sujeito, falas de uma singularidade que perturba uma situação viciada semeando a possibilidade de uma mudança. Essas falas não vêm do céu, mas, para Lélia, da lata de lixo, retomando o que propõe Miller para o fazer do analista. Lélia anuncia seu programa: “o lixo vai falar, e numa boa”. O lixo não é alguém, mas, sim, os restos, em alguém, do que não se chegou a dizer. A esse lixo não será preciso conceder lugar de fala, mas ele próprio criará seu lugar. 

É fazer valer a potência subversiva do que é silenciado, mas, que, nem por isso, deixa de agir. Pelo contrário. Isso, inclusive, força passagem em nossa língua através das marcas, das cicatrizes e dos destroços que não puderam ser eliminados. Nesse sentido, por exemplo, Lélia resgata tudo o que foi dito, um dia, a respeito da figura da mucama para reler a falsa oposição entre a mulata hipersexualizada e a dócil empregada. Ela conta, ainda, ao modo do chiste, como respondeu ao entregador que toca à campainha e pergunta: “A madame está?” E ela diz: “Não, a madame saiu”. Em vez de conscientizar o entregador de que a madame não existe e nem deve existir, ela o força a lidar com o paradoxo de uma “dona” negra.

Como o silenciado é feito de memória, fragmentos de cenas, palavras, cheiros e sons perdidos, seu impacto é estranho. E, às vezes, o essencial é apenas uma dobra na língua. Para alguns, no exemplo de Lélia, a tendência a falar Framengo, em vez de Flamengo, pela impossibilidade de em algumas línguas banto articular o fonema “fla, ou o “ble” de problema.

É sua tese de base: nosso mundo tem em grande parte ossatura negra, assim como indígena, que reverbera. Basta alguém enunciar Oxalá, por exemplo. As ressonâncias vão longe. Aposto que nem mesmo os donos do agronegócio ou os empresários paulistanos são insensíveis aos ecos do tupi ou do iorubá de nossa conversa de todo dia. É o pretuguês, de Lélia. A língua brasileira, ou melhor, das terras de uma “Améfrica ladina”, expressão resgatada por ela do psicanalista MDMagno. O pretuguês é o português que se deixa atravessar pelo que de sua história foi, mais que rechaçado, estraçalhado. Suas marcas, porém, estão no ar, na argamassa do que nos constitui. Somos filhotes da cultura, feita não apenas do que se vê e sente, mas também do que se pressente na ponta da língua, desses restos linguageiros que Lacan chamou lalíngua.

Que a leitura de Lélia possa ser usada não apenas pelos calados por um silêncio assassino, para encontrarem um caminho de fala e transformação. Mas, também, para que se aquilate como a interpretação psicanalítica se utiliza da lalíngua do analisante para fazer o novo falar. Aprendemos com ela sobre o modo como o analista pode, com sorte e muita transpiração, fazer valer, em uma vida, o lixo como abertura a um novo horizonte.

Marcus André Vieira

Apresentação Radar do Analista Cidadão

Por Marcus André Vieira 

Textos, vídeos, resenhas, podcasts, entrevistas e o que mais entrar no radar de minha formação continuada e que me pareça poder servir a outros. Além disso, colegas serão convidados a fazer o mesmo, com o compromisso de que cada um possa dizer de que modo entende o valor, em sua formação, da mídia abordada.

Do que acontece na cidade, muita coisa concerne ao analista. Como cidadão, ele, como tantos, não pode se manter distante do que ocorre em sua época. Mais ainda em um tempo e lugar como os nossos, que caminham tantas vezes em direção ao pior. Algumas das produções da cultura, porém, dizem mais diretamente ao analista por serem afins com a novidade e abertura que o inconsciente pode sustentar. Canções, imagens, filmes, textos e tantas outras produções culturais sempre foram nossos aliados. Resta que é preciso encontrar o que desses objetos nos auxilia mais diretamente em nosso fazer para seguir, mesmo que por outros caminhos, no rastro de Freud e Lacan. É isso que tentaremos trazer aqui, contando também com os objetos de suportes os mais variados que sejam propostos a nosso radar. 

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