Que liberdade? (com Adriano Lourenço e Luis Rodrigues)

O psicanalista tende a se ver em exterioridade com relação à cidade – como se pudesse erigir seu consultório em um lugar atópico, o de um intelectual estrangeiro, por exemplo. Age como aquele que estaria sempre em outro mundo, ou ainda em um espaço zen, extraterritorial, termo de J. Lacan para ironizar esse ponto de onde o analista assistiria ao mundo, nos domingos da vida.

Apesar disso, porém, na prática analítica não há como estar de fora. O material que se apresenta nas histórias que nos contam os analisantes não tem unidade o bastante para estabilizar de modo firme um dentro-fora. Afinal, dos personagens de minhas narrativas em análise, quais fazem parte de mim? Quem é propriedade de minhas memórias? Apenas os que conheci? Ou devo incluir os parentes, mesmo os de gerações passadas de quem só ouvi falar? E os personagens marcantes de ficção lida, ouvida ou assistida? Dito de outro modo, quais as fronteiras de minha cidade psíquica? Estamos bem distantes da ideia de um porão ou baú de memórias em que ainda se teima em meter o inconsciente freudiano.

Vale aqui a aproximação surpreendente feita por Lacan entre o inconsciente e a cidade em que estava quando de suas conferências em Yale: “a melhor imagem para resumir o inconsciente é Baltimore, ao amanhecer”, uma miríade de luzes, ruas e veículos em trânsito vistos da janela de seu quarto de hotel. Não há no inconsciente-Baltimore nenhum espaço fora de Baltimore. Há, claro, vielas abandonadas, espaços esquecidos, pode haver submundos e porões, mas tudo está ali e acontece ao mesmo tempo agora, não em outra dimensão de espaço ou tempo.

A ilusão autocentrada do analista é ainda mais incongruente em um momento da cultura em que nada mais fica de fora da “grande feira” contemporânea, como Lacan se refere a nossos dias (cf. Radiofonia). Só há “fora” na condição do absolutamente fora, não como o excluído, a quem sempre pode se prometer incluir, mas como o matável, aquele invisibilizado cuja vida não conta por não ser apto a participar do consumo. Dito de outra forma, fora da guerra de todos contra todos do mercado, só os objetos da barbárie necropolítica.

No entanto, se, apesar do que alguns analistas creem, a prática freudiana se faz sempre in loco, sem visão panorâmica, sem outro lugar a não ser o das caminhadas pela cidade de seu analisante, talvez o analista tenha algo a propor. Não poderia o analista ter algo a dizer sobre o que seria conquistar alguma liberdade, no mínimo paradoxal, claro, para quem se move necessariamente dentro de uma matriz que não escolheu e de qual não há saída possível?

Neste Radar do Psicanalista Cidadão, convidei Adriano Lourenço e Luís Rodrigues para uma conversa com base em duas concepções de cidade e de ação política que parecem afins com essas premissas freudianas. Discutimos não o que seria uma política específica da psicanálise, se é que há alguma, mas duas formas de conceber a política que parecem partilhar de elementos próximos aos que põe em cena o ato analítico: A teoria política de Hanna Arendt e a de Chantal Mouffe e Ernesto Laclau. Falamos de noções como liberdade e determinação, milagre e acontecimento, a contingência do ato, o acontecimento e a interpretação analítica.

A expressão “psicanálise tátil” me pareceu traduzir de modo feliz o modo como o pé-no-chão do analista, nada zen, nada extraterritorial, possa, talvez, permitir que ele ande junto com os que nos ensinam sempre ser possível, a despeito de tudo, engendrar em pleno sol do meio-dia, um campo de sombra, uma exterioridade interna, êxtima segundo o neologismo de Lacan. São os que se aquilombam a partir de seu fazer e que, por isso mesmo, são os mais visados pela necropolítica de mercado, esses que com um pouco de arte ou loucura promovem o milagre do acontecimento subversivo, tal como foi o de Freud em seu tempo.

Marcus André Vieira.
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