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Nota de rodapé:

Luiz Felipe Monteiro

[Associado IPB]

Ela se apresenta no texto de forma discreta e sorrateira e nos

remete aos alicerces bibliográficos utilizados por um autor

no exercício de seu raciocínio escrito. A nota de rodapé é

para o leitor uma plataforma de vôo para outras leituras,

leituras cruzadas, leituras ressoantes.

Deste esta perspectiva, a nota de rodapé é um bom nome

para esta seção do Bibliô cuja proposta é apresentar uma

citação bibliográfica sobre algum tema em psicanálise onde

o autor utiliza-se de referências de outros discursos.

Aqui apresentamos um trecho do capítulo “Melancolia,

dor de existir, covardia moral” do livro Versões da Clínica

Psicanalítica de Éric Laurent. Nesse texto onde o autor

delineia um percurso preciso das observações de Lacan

sobre o tema da Melancolia, Laurent vai se servir de Jorge

Luis Borges e sua Biblioteca de Babel, além da obra clássica

de Richard Burton A Anatomia da Melancolia. A referência

ao escritor argentino além de ilustrar um ponto central na

clínica da melancolia é uma citação simpática a como o

psicanalista pode se servir da referência à ideia de biblioteca.

“O que separa a depressão da melancolia e rompe seu

continuum

é que, na melancolia, trata-se do objeto

a

fora

de qualquer pontuação fálica. Um gozo imperativo retorna

no lugar onde falta o gozo fálico, quando o sujeito esbarra

na impossibilidade inscrita na inexistência da relação sexual.

Cabe –nos distinguir, a partir de

Televisão

, a clínica da

covardia moral e a do rechaço do inconsciente. Trata-se, no

primeiro caso, de um sujeito definido a partir da estrutura

da linguagem, cuja chave é o desejo. No segundo caso, o

rechaço do inconsciente remete-nos a um outro registro,

aquele em que o gozo mortífero ata-se ao nascimento

do símbolo. Foi nessa zona que, em 1953, Lacan assim

apontou: “Quando queremos atingir no sujeito aquilo que

havia antes dos jogos seriais da fala, aquilo que é primordial

no nascimento dos símbolos, isso, nós o encontramos na

morte”¹. Aqui, o indicado é uma clínica que não se esgote

em acompanhar o estabelecimento do “discurso deprimido”.

Podemos incluir nela não apenas os fenômenos depressivos

isolados do adulto, que escapam a qualquer retomada da

história do sujeito e de seus sintomas, mas também os

grandes momentos depressivos da criança. Trata-se, aí, de

interrogar o sujeito, não pelo lado do inconsciente, como

discurso do Outro, mas pelo lado do silêncio das pulsões

de morte. No novo gozo que irrompe nesse sujeito,

encontramos indicações sobre o que poderemos esperar em

tais ou quais momentos da vida, nos encontros ruins que

possam ter lugar, inclusive no curso da psicanálise. Nossa

hipótese é que esses momentos de rechaço do inconsciente

têm tanto valor indicativo quanto este ou aquele “fenômeno

elementar”, isolado por Lacan, por exemplo, depois de

Freud, no caso do Homem dos Lobos.

Nesses momentos, o sujeito é confrontado, não com o

Outro do significante, mas com o lugar da letra, com a

terrível biblioteca universal da qual o sujeito está excluído

como vivente. Desse sentimento, Jorge Luis Borges, muito

interessado no budismo, soube fazer um conto. Sua famosa

“Biblioteca de Babel”, com efeito, é explicitamente colocada

sob os auspícios do grane melancólico Burton e de sua

Anatomia da melancolia³

. O ponto a que ele nos remete é

o de um exercício recomendado por Burton para distrair

o melancólico: iniciá-lo na variação das vinte e três letras.

O bibliotecário de Borges, que se “prepara para morrer”,

constata: “A escrita metódica me distrai, felizmente, da atual

condição dos homens. A certeza de que tudo está escrito

anula-os ou faz deles fantasmas”². Desse momento de

destituição subjetiva imposto pela prática da letra, o sujeito

borgesiano extrai sua certeza melancólica.

Letter, litter,

o

aforismo joyceano soube ser levado em conta por Borges,

e encontrou a imagem que o consuma no momento em

que o corpo do bibliotecário cai no universo dos livros da

biblioteca, até se apagar,

sicut palea.

Essa certeza é o avesso

do que Lacan pretendia obter dessa outra prática da letra

que é a psicanálise. Ele não colocava nada menos que o

entusiasmo como o afeto exigível por ocasião de seu fim”.

LAURENT, Éric. Melancolia, dor de existir, covardia moral. In: Versões da

Clínica Psicanalítica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995.

As notas de rodapé de Laurent em seu texto:

¹ LACAN, J. Écrits. Paris: Seul. 1966, p. 320. [LACAN, Jaques. Escritos. Rio de

Janeiro : Jorge Zahar Editor, 1998].

² BORGES, J. L. Fictions. Paris: Gallimard. 1951, p. 106. [BORGES, Jorge

Luis. A Biblioteca de Babel. In: Ficções. São Paulo: Globo, 2001].

³ Apesar do texto original não registrar a citação bibliográfica ao livro de Burton,

segue a referência: BURTON, Richard.

Anatomia da melancolia

(v. I). Curitiba:

Editora UFPR, 2001.