

ESCRITOS.
Jacques Lacan
(1901-1981).
A primeira vez
que vi os Escritos à venda
em uma livraria foi um
acontecimento para mim,
de corpo e espírito. Após tê-
lo comprado, atravessando a
porta da livraria com o objeto
em minhas mãos, sentia-me
alguém potente e importante,
uma mistura de Conan, o
bárbaro, com um professor da
universidade de Princeton. Eu
tinha nas mãos algo raro e único, um tesouro. O nome da
rua era Anita Garibaldi, no centro de Florianópolis. Anita
Garibaldi, a heroína dos dois mundos, era nada junto ao
meu Escritos. Aliás, com a aquisição dos Escritos era como
se eu tivesse conquistado a companheira de Giuseppe. Já na
calçada, eu não andava, eu flutuava como uma entidade. Eu
estava fascinado por aquele volume de quase 1000 páginas.
Eu dizia para mim mesmo e silenciosamente para os outros,
aguardem, vou desvendar tudo.
Na época, eu era estudante de psicologia e teria que abrir
mão de alguns prazeres para decifrá-lo. Mas para conquistar
os Escritos de Lacan, assim como Adrian Leverkün, eu
poderia até prescindir do amor e das mulheres, se necessário.
Na verdade, eu não sabia que ali eu selava um pacto com um
Mefistófeles, Lacan, o diabo provavelmente. O livro havia
sido recentemente lançado pela editora Jorge Zahar e o valor
era alto. Nenhum problema para mim, pois eu pensava que
o resto da minha vida eu iria passar solitário desvendando
os seus segredos. Com os Escritos eu não precisava de mais
nada, ele me nutriria. Não sabia eu que a conquista dos
Escritos de Lacan jamais seria alcançada. Continuo aqui
batendo cabeça com os meus Escritos, no amplo sentido que
a expressão possui. Mas felizmente meu pacto não durou
muito, sou casado e pai de três filhos. Não abdiquei nem das
mulheres e nem do amor. No entanto, continuo apaixonado
pelos Escritos. Minha mulher diz que é a Outra. Quem sou
eu pra discordar?
Em relação a essa coletânea fundamental de Lacan, a minha
intenção em transmitir a sua importância pode ser traduzida
pelas próprias palavras do autor: “Queremos, com o percurso
de que estes textos são os marcos e com o estilo que seu
endereçamento impõe, levar o leitor a uma consequência em
que ele precise colocar algo de si” (LACAN, 1998, p. 11).
ANÁLISE TERMINÁVEL E INTERMINÁVEL
. Sigmund
Freud (1859-1939).
Segundo Lacan, as “vias que Freud
abriu ao longo dessa experiência, ele as perseguiu durante
toda a sua vida, atingindo algo que se poderia chamar uma
terra prometida. Não se pode dizer, entretanto, que ele
tenha entrado nela. Basta ler o que se pode considerar o
seu testamento, “Análise terminável e interminável”, para
ver que se ali havia algo de que teve consciência, é de que
não tinha entrado na terra prometida” (LACAN, J., O
Seminário, Livro 1, “Os escritos técnicos de Freud”, p. 24).
Pode parecer frustrante o modo como Lacan re-lê esse texto
de Freud, mas não é. Foi a herança deixada desse texto de
Freud que Lacan tomou-a para si e procurou desenvolvê-la
ao longo do seu ensino.
Encontramos em “Análise terminável e interminável” uma
descrição precisa sobre os limites da experiência psicanalítica
nos anos 30, os limites de Freud e seus colaboradores, dos quais
Lacan conseguiu atravessar. O problema sobre a assíntota
nos finais dos tratamentos e sobre os seus obstáculos: os
parciais, os fundamentais e o absoluto, a rocha da castração.
Além disso, a interlocução crítica de Freud com as tentativas
de seus alunos em acelerar os tratamentos, tanto a de Sandor
Ferenczi com a técnica ativa, quanto à de Otto Rank na
teoria do trauma do nascimento. Miller qualificou esse texto
de Freud como uma sinfonia do resto. Os restos das fixações
libidinais e o fracasso da sua desativação, responsáveis pelo
masoquismo primário e a reação terapêutica negativa. A
relação do Eu com os restos, descrito como mecanismos de
defesa. Por fim, a herança arcaica filogenética, a recapitulação
no desenvolvimento do indivíduo de um resto da evolução
humana, o assassinato do pai. Podemos afirmar que esse
texto é a fonte do programa de pesquisa lacaniano, e a partir
dele é possível pensar o problema do gozo feminino, o final
de análise, tanto na vertente do atravessamento da fantasia
como no da identificação ao sintoma. Encontramos também
a inspiração do sinthoma lacaniano, em torno de um resto
impossível de desativar.
Esse foi um texto que produziu efeitos epistêmicos na
minha formação, tendo em vista que me debrucei sobre ele
durante um longo período em que realizei um mestrado e
um doutorado. É um texto fundamental para entendermos a
relação entre o ensino de Lacan e a experiência fundamental
de Freud.
Referências:
ENDE, Michel.
Manu, a menina que sabia ouvir
. São Paulo: Editora
Salamandra, 1984.
MANN, Thomas.
Doutor Fausto.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002.
SHAKESPEARE, William.
Hamlet.
Porto Alegre: L&PM Editores, 1997
(Tradução de Millôr Fernandes).
LACAN, Jacques.
Escritos.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
FREUD, Sigmund.
Análise terminável e interminável
. Edição
Standard
das
Obras Psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago, v. XXIII, 1996, p. 225-
270.
era visível, da qual, obviamente, eu me identificava. Trata-
se aqui dos livros como bons companheiros, e para isso
é necessário assumir os pontos de identificação. Lacan
afirmava que uma histérica não é uma mulher, e em Hamlet
temos um obsessivo que não é um homem. Hamlet se divide
aí, diante do pai, no lugar do homem e do filho e se recusa,
segundo Lacan, a reconhecer a castração da mãe. Para mim,
tudo de Shakespeare é perfeito: Othello, Macbeth, Noite de
reis, O mercador de Veneza, Sonhos de uma noite de verão,
Rei Lear, etc... Mas em Hamlet encontramos ilustrações
sobre o complexo de castração, sobre o complexo de Édipo
e, sobretudo, sobre o universo da posição masculina,
atualmente um tanto desprestigiado.