

O
psicanalista
como leitor
de Lacan
*
.
Por um novo leitor
Lacan publicou em vida apenas
um único livro de sua autoria. Foi só
em 1966 que publicou seus
Escritos
,
um catatau com cerca de 900
páginas. Trata-se ali do compêndio
de diversos textos ao longo de sua
trajetória até então. Todos eles
publicados de forma esparsa e,
finalmente, editados segundo uma
lógica não cronológica e linear.
É de se notar que o título –
Escritos
– tem um caráter eminentemente
tautológico. Assim como foram
também “Radiofonia” (uma emissão
numa rádio belga), “Televisão”
(um programa numa TV francesa),
os
Seminários
(dados durante 25
anos ininterruptamente). Como
não pensar, nessa coincidência de
procedimentos semelhantes ao longo
de sua obra, em um ato deliberado
que visa a afastar seu leitor /
espectador da falácia do conteúdo
como resposta apaziguadora, tal
como ele mesmo aponta na frase
de “O aturdito”: “Que se diga fica
escondido por trás do que se diz no
que se ouve”?
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Com relação à obra de Lacan,
podemos abordá-la a partir de três
distintos aspectos especialmente.
O primeiro aspecto é seu caráter
criptográfico. Trata-se da leitura de
uma escrita criptografada: servimo-
nos de uma chave de leitura que
se utiliza para cifrar e decifrar um
texto orientado, aparentemente
ininteligível, incompreensível para
quem não se autorize por si mesmo
a enfrentá-lo.
A criptografia é um termo
que vem do grego e faz a junção
de
kryptós
+
graphein
. “Kryptós”
quer dizer
escondido
. “Graphein”,
por sua vez, quer dizer
escrita
. A
criptografia seria então essa escrita
destinada àqueles que detêm uma
chave de leitura, uma espécie de
código secreto em que somente o
destinatário tem acesso à mensagem.
Já desde o
Seminário
, livro 2
(1954-55), Lacan fazuma articulação
entre psicanálise e cibernética. E a
criptografia moderna é formada pelo
estudo de algoritmos criptográficos
que são implementados em
computadores e nas inovações da
internet. Poderíamos com isso
arriscar que uma possível (dentre
as muitas possíveis) chave secreta
de Lacan foi aquilo que mais para a
frente, grosso modo, ele chamou de
“desejo do analista”?
O
segundo
aspecto
que
podemos abordar e acompanhar
nos desdobramentos desta obra,
é encarando-a como um imenso
puzzle
. Ao longo de seu ensino Lacan
foi escrevendo textos, prefácios,
montando relatórios, ditando seus
seminários, fazendo conferências,
enfim, compondo um gigantesco
quebra-cabeça em que temos, como
leitores, a incumbência de conectar
inúmeras peças soltas.
Um “puzzle”, além de significar
em inglês “quebra-cabeça”, também
quer dizer uma questão que
apresenta dificuldades, ou seja, um
puzzle
também pode significar um
enigma
. Um enigma a ser decifrado
certamente por alguns poucos ou
apenas que foi ou será citado por
tantos outros.
O terceiro e decisivo aspecto
– e que mereceria aqui maiores
considerações – é ler Lacan
tratando-o como um
hipertexto
.
O leitor tem com isso a liberdade
de escolher múltiplos caminhos.
A partir de associações possíveis
que cada texto, ou cada título de
um
Seminário
, mas também cada
significante, cada conceito ou cada
autor mencionado por ele nos remete
a uma leitura própria e particular de
seu legado.
Se pegarmos um elemento
qualquer em relação ao qual somos
fisgados por uma palavra de Lacan,
um neologismo, por exemplo,
facilmente hoje temos condições
de fazer um mergulho numa outra
dimensão e alcance de sua obra,
principalmente com o advento das
novas tecnologias digitais.
O verdadeiro caminho
Nos primeiros anos da década de
1920, em sua
Antologia de páginas
íntimas
Kafka enumerou em suas
meditações mais de uma centena
de aforismos sobre o pecado,
o sofrimento, a esperança e o
verdadeiro caminho. No final, ele
coloca misteriosamente um asterisco
e deixa a seguinte nota:
“Não é necessário saíres da tua
casa. Continua sentado à mesa,
ouve. Não ouças sequer, espera
simplesmente.
Não
esperes,