

ASSUNTOS LIVRESCOS
Leituratua
Em 1906 Freud recebe uma carta de um dos
frequentadores da Sociedade das Quartas-feiras, o
editor vienense Hugo Heller. Na missiva, o remente
faz a curiosa solicitação para que Freud enumere dez
bons livros que o marcaram em sua vida. A lista ficou
conhecida como os “Dez bons amigos de Freud”.
A referência amistosa aos livros é índice não só da
intimidade dessas obras com uma vida, como também
dos efeitos que a experiência de leitura pôde remeter ao
seu leitor.
A experiência de leitura é por vezes uma confrontação
com algo da contingência que ressoa no falasser,
algo inesperado, mas já sabido, como também uma
perplexidade insuspeita. Ler, poderia se dizer, é um
suspense.
Dito isso, e seguindo o espírito da carta recebida por
Freud, o Bibliô convidou Luis Francisco Camargo,
Lucíola Macedo e Tânia Abreu a fazerem a sua lista dos bons
livros que marcaram especialmente a sua formação como
psicanalista. A pergunta endereçada a cada um foi: “Quais
os livros que tiveram um efeito de acontecimento em sua
formação analítica?”.
Livros que marcaram
Lucíola M cêdo
[AMP/EBP - Minas Gerais]
A pergunta sobre os livros que marcaram minha formação
foi um convite a uma breve viagem no tempo, que por
sorte, não durou mais que um instante. Subitamente o
livro’acontecimento que funcionou como divisor de águas se
apresentou à minha memória, junto com uma sequência de
flashes sobre o modo como ele chegou às minhas mãos: era
então estudante de psicologia, tinha começado a ler Freud
e Lacan nas esparsas disciplinas do curso, estava em análise,
começava a frequentar a Seção Bahia e me engajara na
Iniciativa Escola, ao mesmo tempo em que me dedicava aos
múltiplos interesses, que já naquela época, se faziampresentes:
transitava entre o existencialismo, a mística, a poesia e outras
artes; além de psicanálise gostava de astrologia, yoga, surf,
triátlon, música, artes plásticas e dança contemporânea... foi
quando comecei a ler mais, ainda. O seminário estava entre
as referências bibliográficas das aulas de Leda Guimarães,
professora convidada a lecionar uma disciplina naquele
semestre. A conversa sobre mais, ainda
se prolongava durante o percurso de uma carona que lhe
dava em meu descapotado e velho bugre, até a rodoviária.
Leda ia e vinha de Feira de Santana em dias de aula em São
Lázaro – e eu voltava para casa em Itapuã, já às voltas com a
urgência em escrever um texto sobre aquelas leituras que me
reviravam. Foi um acontecimento, mais, ainda, nos idos de
meus vinte e poucos anos, e em meio à escrita, os poemas, a
dança, a errância, os livros, os impasses do sexual, o Outro
gozo, a literatura, os mapas astrais e também os geopolíticos,
a filosofia, os amores, a mística, o mar, e a vida de cada dia...
Tudo isso junto e misturado até chegar naquele ponto, o da
letra, depois do qual a escrita, os poemas, a dança, a errância,
os livros, o Outro gozo, a literatura, os mapas, a filosofia,
os amores, a mística, o mar, e a vida de cada dia, ganharam
uma legibilidade radicalmente diferente. Foi quando eu
disse adeus à esfera, e com ela às concepções de mundo. Foi
quando, com Lacan, a ficha caiu: “nada é menos garantido...
do que a existência de um mundo”. Foi com “A função do
escrito”, seguido de “O amor e o significante” que o adeus
aconteceu: o adeus à revolução, à começar por aquela dos
astros, a copernicana; foi com a partição da esfera em elipse;
bye bye centro, centramento, consciência, “e tudo o que gira
ao redor”; com a elipse isso não gira, “isso cai”, “isso falha”,
isso desfunciona, isso acontece no corpo de gozo. Foi esse
o primeiro corte operado, em psicanálise, pela leitura de
um livro, corte incisivo e indelével, no que se convenciona
chamar de tempo, produzindo-se ali um antes e um depois.
Logo após a leitura de mais, ainda, e já tendo feito uma
escolha pela psicanálise, vem o segundo livro da lista. Aquele
sobre o qual Lacan dizia, já na primeira linha do Seminário
20, ter aprendido que poderia, sobre isto que estava em jogo
(o gozo), dizer ainda, um pouco mais. O segundo livro de
minha lista é o Seminário 7, a ética da psicanálise. O terceiro,
e na sequência, é o Seminário 11, os quatro conceitos
fundamentais da psicanálise. A leitura de mais, ainda foi
sem freios, pura fruição. Já na leitura do seminário da ética,
e também de os quatro conceitos fundamentais, tentava,
sempre que possível, recorrer às referências e autores com os
quais Lacan dialogava, especialmente, ao texto freudiano. Isso
se tornou para mim um método. Mas essa é outra história...