Table of Contents Table of Contents
Previous Page  31 / 155 Next Page
Information
Show Menu
Previous Page 31 / 155 Next Page
Page Background

SADE

Júlia Solano

[Associada IPB]

“Tudo é bom quando é excessivo.”

“A primeira lei que a natureza me

impõe é gozar à custa seja de quem

for.”

(Marquês de Sade)

O impacto que essas frases, escritas pelo Marquês de Sade no

séc. XVIII provocam ainda nos dias atuais, nos dão a dimensão

da complexidade de sua obra. É este mesmo impacto que a

peça, intitulada

Sade

, encenada pelo grupo

TEATRO NU

,

parece produzir nos espectadores. Escrita por Gil Vicente

Tavares, este espetáculo destaca momentos marcantes da vida

de Donatien Alphonse François de Sade, o famoso Marquês

de Sade, entrelaçando-os a elementos ficionais, bem como a

alguns trechos de suas obras.

A relação difícil que mantinha com um de seus filhos,

quem inclusive queima seus livros após sua morte, a longa

permanência no

cárcere onde escreveu a maior parte das

suas obras primas

que por muito tempo foram rejeitadas

pelo público, a perseguição de sua sogra que não o perdoou

por estabelecido uma relação com a própria cunhada são

situações vividas por este autor que são retratadas na peça

e que nos permitem traçar uma certa distinção entre sua a

vida e a sua obra. Ao contrário dos seus livros que versam

sobre relacionamentos sádicos estabelecidos por algozes

que abusam de suas

vítimas, a sua vida pessoal

, tal como

vemos na peça, aponta para o oposto, pois Sade parece ter

sido muito mais vítima do que algoz.

É isso o que nos diz

Lacan, no seu texto

Kant com Sade

, quando diz que Sade

na sua vida

é

um masoquista e não um sádico; o sadismo se

reservava aos seus livros.

Outro aspecto que podemos destacar do espetáculo é o efeito

que este parece produzir nos espectadores. A cada momento

que trechos dos escritos de Sade

são proferidos pelos atores,

parte da

plateia fica impactada, nos fazendo perceber que

a sua obra, ainda é tão chocante quanto era há mais de

duzentos anos trás. Parece que nem a monarquia, nem os

entusiastas da revolução francesa, nem a tão bem informada e

“liberal” sociedade atual conseguem conviver facilmente com

as ideias deste autor, que não cansa de apontar a dimensão

de gozo que está sempre presente nos ditos bons costumes,

denunciando assim a hipocrisia em jogo nas relações sociais

que supostamente prezariam pelo bem de todos. O que está

por trás da moralidade rígida e suas severas proibições é, na

verdade, um convite à transgressão, ao gozo. E diante disto,

Sade nos convida: gozemos!

Como é possível lidar com isso que nos ultrapassa, que gera

prazer no desprazer, o vivo e indomesticável dentro cada umde

nós, o “insocializável”? É dessa dificuldade que a humanidade

padecerá sempre, mesmo quando tentamos negá-la, tal

como vem sendo feito atualmente através de práticas cada

vez mais populares que prometem domesticar e normatizar

comportamentos, buscando assim anular a dimensão do

mal estar humano. Por isso ficamos tão impactados quando

ouvimos as palavras do Marquês de Sade no palco, mesmo

depois de duzentos anos, pois elas tocam naquilo que nos

embaraça desde sempre e que sempre nos embaraçará seja

agora, seja daqui a quinhentos anos. Há gozo!