

SADE
Júlia Solano
[Associada IPB]
“Tudo é bom quando é excessivo.”
“A primeira lei que a natureza me
impõe é gozar à custa seja de quem
for.”
(Marquês de Sade)
O impacto que essas frases, escritas pelo Marquês de Sade no
séc. XVIII provocam ainda nos dias atuais, nos dão a dimensão
da complexidade de sua obra. É este mesmo impacto que a
peça, intitulada
Sade
, encenada pelo grupo
TEATRO NU
,
parece produzir nos espectadores. Escrita por Gil Vicente
Tavares, este espetáculo destaca momentos marcantes da vida
de Donatien Alphonse François de Sade, o famoso Marquês
de Sade, entrelaçando-os a elementos ficionais, bem como a
alguns trechos de suas obras.
A relação difícil que mantinha com um de seus filhos,
quem inclusive queima seus livros após sua morte, a longa
permanência no
cárcere onde escreveu a maior parte das
suas obras primas
que por muito tempo foram rejeitadas
pelo público, a perseguição de sua sogra que não o perdoou
por estabelecido uma relação com a própria cunhada são
situações vividas por este autor que são retratadas na peça
e que nos permitem traçar uma certa distinção entre sua a
vida e a sua obra. Ao contrário dos seus livros que versam
sobre relacionamentos sádicos estabelecidos por algozes
que abusam de suas
vítimas, a sua vida pessoal
, tal como
vemos na peça, aponta para o oposto, pois Sade parece ter
sido muito mais vítima do que algoz.
É isso o que nos diz
Lacan, no seu texto
Kant com Sade
, quando diz que Sade
na sua vida
é
um masoquista e não um sádico; o sadismo se
reservava aos seus livros.
Outro aspecto que podemos destacar do espetáculo é o efeito
que este parece produzir nos espectadores. A cada momento
que trechos dos escritos de Sade
são proferidos pelos atores,
parte da
plateia fica impactada, nos fazendo perceber que
a sua obra, ainda é tão chocante quanto era há mais de
duzentos anos trás. Parece que nem a monarquia, nem os
entusiastas da revolução francesa, nem a tão bem informada e
“liberal” sociedade atual conseguem conviver facilmente com
as ideias deste autor, que não cansa de apontar a dimensão
de gozo que está sempre presente nos ditos bons costumes,
denunciando assim a hipocrisia em jogo nas relações sociais
que supostamente prezariam pelo bem de todos. O que está
por trás da moralidade rígida e suas severas proibições é, na
verdade, um convite à transgressão, ao gozo. E diante disto,
Sade nos convida: gozemos!
Como é possível lidar com isso que nos ultrapassa, que gera
prazer no desprazer, o vivo e indomesticável dentro cada umde
nós, o “insocializável”? É dessa dificuldade que a humanidade
padecerá sempre, mesmo quando tentamos negá-la, tal
como vem sendo feito atualmente através de práticas cada
vez mais populares que prometem domesticar e normatizar
comportamentos, buscando assim anular a dimensão do
mal estar humano. Por isso ficamos tão impactados quando
ouvimos as palavras do Marquês de Sade no palco, mesmo
depois de duzentos anos, pois elas tocam naquilo que nos
embaraça desde sempre e que sempre nos embaraçará seja
agora, seja daqui a quinhentos anos. Há gozo!