

6
Considero um equívoco pensar, como Robert,
que a escrita de
Moisés
é uma espécie de denegação
à “fatalidade inexorável da filiação”. Trata-se do
contrário. Freud, em
Moisés
, se posiciona frente
à herança que recebeu de seus pais, o que é bem
diferente de recusá-la. Lembremos que em seu
Compêndio de Psicanálise
, escrito à mesma época
que o terceiro ensaio de
O homem Moisés e a religião
monoteísta
, Freud praticamente para de escrever,
evocando a frase de Goethe que abre um dos
capítulos de
Totem e tabu
. “Aquilo que herdastes
de teus pais conquista-o para fazê-lo teu”. Assim,
o desfecho proposto por Robert ao dizer que, ao
final de sua vida, Freud “não é mais nem judeu nem
alemão, nem o que quer que seja que ainda possa
trazer um nome: quer ser apenas o filho de ninguém
e de lugar nenhum, o filho de suas obras, e de sua
obra que, à semelhança do profeta assassinado, deixa
os séculos perplexos ao mistério de sua identidade”
(ROBERT, 1989, p. 166), não me parece preciso.
Ao final de sua frase, ela afirma “o mistério de sua
identidade”. Está aí toda a questão. A esse respeito,
Fuks é quem melhor refuta Robert:
Desnaturalizar
e
desapropriar
uma figura ancestral do próprio
universo simbólico não significa,
necessariamente, odiar-se; antes disso,
pode ser um sinal de quem possui a
coragemde sedespojardeummitopara
reintegrar outro saber sobre a origem
e, com isso, perpetrar a construção de
uma identidade. Pode-se dizer que
Freud – tal como o profeta bíblico
que quebrou as tábuas da Lei sobre a
imagem do bezerro de ouro para fazer
valer a lei da irrepresentabilidade de
Deus – torna-se, com a publicação de
Moisés e o Monoteísmo, igualmente
um demolidor de ídolos: reativa o
imaginário bíblico, demole seu ídolo
maior, faz reintroduzir o tema do
estrangeiro na história desse povo
que se funda e se sustenta, a partir de
seu próprio estranhamento (FUKS,
2000, p. 90).
Este é o ponto que interessa a Said (2004)
em
Freud e os não europeus
: “A visão que Freud
tem de
Moisés
como alguém de dentro e de fora, é
extraordinariamente interessante e desafiadora” (p.
48). Há um estrangeiro no seio da tradição judaica:
“Edward Said nos oferece
Moisés e o monoteísmo
como nada menos que uma parábola política para os
nossos tempos” (ROSE, 2004, p. 94).
Ao escavar a arqueologia que funda a
identidade judaica, Freud aponta para a fissura, para
a impossibilidade de se encontrar uma unidade.
Recusar essa falha é ir em direção ao engodo da
constituição de uma identidade total. Ou seja, no
lugar da identidade fundadora, Freud descobre uma
divisão original...
Rev.: Luiz Gonzaga Morando Queiroz
__________
REFERÊNCIAS
FREUD, S.
O homem Moisés e a religião monoteísta
. (1939) Trad. Renato
Zwick. Porto Alegre: L&PM, 2014.
FREUD, S.
Totem e tabu
. (1913) Trad. Paulo César de Souza. São Paulo:
Companhia das Letras, 2012.
FUKS, B.
Freud e a Judeidade
: a vocação do exílio. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 2000.
GAY, P.
Freud
: uma vida para nosso tempo. São Paulo: Companhia das
Letras, 1989.
GAY, P.
Um judeu sem Deus
: Freud, ateísmo e a construção da psicanálise.
Rio de Janeiro: Imago, 1992.
LACAN, J. Radiofonia. (1970) In: ___.
Outros escritos
. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2003. p. 400-447.
ROBERT, M.
De Édipo a Moisés
: Freud e a consciência judaica. Rio de
Janeiro: Imago, 1989.
SAID, E.
Freud e os não europeus
. São Paulo: Boitempo, 2004.
YERUSHALMI, Y. H.
O Moisés de Freud
: judaísmo terminável e
interminável. Rio de Janeiro: Imago, 1992.