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no sentido filosófico, um inversor e
remapeador de geografias e genealogias
aceitas ou estabelecidas. Ele assim
se presta, pela memória, pesquisa e
reflexão, a uma estruturação sem fim,
tanto no sentido individual como
coletivo. Que nós diferentes leitores
de diferentes períodos históricos,
em contextos culturais diferentes,
continuemos a fazê-lo em nossas
leituras de Freud, me parece nada
menos do que uma justificação do
poder que o seu trabalho tem para
instigar novos pensamentos, bem
como para iluminar situações com
que ele mesmo talvez jamais tenha
sonhado (SAID, 2004, p. 57).
Assim, ler um texto freudiano é ler um texto
que se contrapôs de forma vigorosa às barreiras
históricas de seu tempo. Ler é acessar algo que estava
em estado de latência na escrita e que reverbera no
presente, ultrapassando e iluminando situações que
poderiam ser inimagináveis pelo próprio autor. Sem
dúvida, Freud jamais poderia ter sonhado que um
intelectual palestino pudesse lançar mão das suas
elaborações em
Moisés
para endereçar uma crítica a
um pensamento em voga no Estado de Israel no que
se refere à afirmação da identidade judaica.
Sobre Freud e a judeidade
A publicação de
O homem Moisés e a religião
monoteísta
(1939) foi vista por muitos como uma
espécie de acerto de contas entre o pai da psicanálise
e sua renegada condição de judeu. Como se o
livro fosse prova material da relação ambivalente
de Freud com o judaísmo. Freud nunca recusou
seu pertencimento ao povo judeu. Embora tenha,
por diversas vezes, se autonomeado como um
“judeu ateu”, isso não é o mesmo que repudiar sua
identidade judaica. Ao contrário, é possível recolher,
ao longo de sua vasta correspondência, inúmeras
declarações afirmativas nesse sentido. Para um
jornal judaico de Zurique [o
Jüdische Presszentrale
(Imprensa central judaica)], Freud afirma: “posso
dizer que me mantenho tão distante da religião
judaica quanto de todas as outras religiões (...) Por
outro lado, sempre tive um forte sentimento de
fazer parte de meu povo e sempre o nutri em meus
filhos. Sempre permaneceremos sob a denominação
judaica” (FREUD, 1925
apud
YERUSHALMI,
1992, p. 35). Em outros termos, Freud desvincula
pertencimento cultural e observância religiosa.
Énotórioonúmerode estudos que se dedicaram
a analisar a relação de Freud com o judaísmo, mas
boa parte desses trabalhos termina por interpretar
em demasia o homem Freud, deixando escapar
aspectos relevantes à psicanálise propriamente
dita e resvalando para o uso abusivo de fórmulas
reducionistas. Para ficar apenas no mais conhecido
deles, quero citar o livro de Marthe Robert (1989),
Freud e a consciência judaica
, cujo argumento central
é que
O homem Moisés e a religião monoteísta
(1939)
é a expressão das tentativas freudianas de resolução
de seu conflito edipiano com seu pai Jakob. Robert
(1989) considera que a proximidade da morte faz
com que,
Pouco antes de reencontrar seus pais,
ou como diz a Bíblia retornar ao seio
de Abraão, de Isaac e de Jacó, Freud
[seja] tomado por um derradeiro
sobressalto frente à fatalidade
inexorável da filiação, que limita todo
homem impondo-lhe uma origem,
uma raça, um nome. Consciente de
se aproximar perigosamente de Jakob
Freud através de uma semelhança cada
vez mais acentuada, ele se defende
com todas as suas forças contra esse
‘retorno do recalcado’ que, a partir
da metade da vida, anuncia ao vivo a
lenta extinção de sua individualidade
(p. 164).