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não científico baseado em hipóteses infundadas

(GAY, 1992, p. 582). Abram Yahuda afirmou que as

palavras de Freud em seu ódio a Israel poderiam ter

sido pronunciadas por um dos cristãos fanáticos. Mas

o padre Vincent McNabb, em Londres, escrevendo

a um jornal, afirma que talvez fosse o caso de se

perguntar, após a leitura de

Moisés

, “se o autor delas

não teria um grande uma obsessão sexual” (GAY,

1992, p. 583).

O público em geral reagiu mal e se

manifestou de forma feroz: “uma

torrente se precipitou sobre Freud,

estranhos da Palestina, dos Estados

Unidos, da África do Sul, e do Canadá

expressaram seu desagrado com as

ideias de Freud com uma liberdade

irrestrita (...). “É de se lamentar que

os bandidos na Alemanha não tenham

te posto num campo de concentração,

é lá o seu lugar. Quase ninguém foi

capaz de considerar as ideias de Freud

estimulantes ou corretas” (GAY,

1992, 583).

Moisés

causou escândalo. Os povos pré-

históricos indo-europeus empregavam a raiz -

skand

para formar palavras como saltar, trepar, escalar.

Na língua espanhola, esse radical deu origem a

palavras como ascender, descender, ascensor, escala

e transcendência, entre muitas outras. Os indo-

europeus compuseram com

-

skand

e o sufixo -

alo

o vocábulo

skandalo

, que significava obstáculo, que

chegou ao grego como skandalon (“obstáculo” com

o sentido de “armadilha” para derrubar alguém).

O latim tardio o acolheu com a denotação de

“escándalo”, opróbrio, até chegar à forma atual,

Escandalus

, “motivo de ofensa, pedra de tropeço,

tentação”. Pedra de tropeço é uma expressão

idiomática da

Bíblia

hebraica e do Novo Testamento

e denomina a atitude ou comportamento de alguém

que conduz outrem a pecar. Fazer alguém tropeçar.

O que causa escândalo? O que faz alguém

tropeçar? Podemos dizer, sem dúvida, que o furor

logo após a publicação do livro se vincula a sua tese

central: fazer de Moisés um estrangeiro, um egípcio.

Nas palavras de Freud, “privar um povo do homem

a quem enaltece como o maior de seus filhos”. Para

todos, essa ideia é falsa, absurda.

Quero destacar uma pequena passagem de

“Radiofonia”. Lacan ao resgatar a etimologia da

palavra falso, pede que a conectemos menos a seu

oposto, que seria verdadeiro, e mais a sua raiz latina:

falsus

é o caído em latim”. Nas palavras de Lacan:

Tornar dupla essa palavra é tomá-

la como é preciso [comme il faut],

quando se trata de defender o falso

[faux] na interpretação. É justamente

como falsa – digamos, que cai bem –

que uma interpretação opera, por estar

de banda, ou seja: ali onde se dá o ser,

a partir da patacoada [pataqu’est-ce]

(LACAN, 1970/2003, p. 427).

Tornar dupla a palavra falso (“faux” e “il faut”)

é marcar a ligação estreita entre a falha e aquilo que

não se pode dispensar, que é inevitável, que é preciso.

Nesse sentido, “defender o falso na interpretação”

é outra forma de dizer que através da história sem

lógica, através da patacoada, podemos assinalar a

intromissão da falha, que é precisa e que necessita

de tempo para se inscrever. Conclui Lacan: “é ali

que se dá o ser”. Essa dupla vertente, o falso como

falha e como necessidade incontornável, vale tanto

para aquela história contada pelo analisante como

também para a história construída por Freud em seu

Moisés

.

Esse aspecto levantado por Lacan é precioso

para entender o ódio dirigido a Freud quando da

publicação de seu livro e toda a controvérsia que

Moisés

suscita. Ele é um livro que apresenta uma

falha, uma fissura na história de Israel, mas também

na história de cada um de nós.

Quero me valer aqui das reflexões feitas

por Edward Said em seu ensaio intitulado

Freud

e os não europeus

(2004) para demonstrar como

um autor pôde efetuar uma leitura brilhante do

Moisés freudiano, alcançando a meu ver aspectos

fundamentais do texto que se aproximam, em certa

medida, do que Lacan observa em “Radiofonia”

sobre o falso na interpretação.

Said parte do pressuposto de que a forma

como Freud se coloca frente à questão da identidade

judaica pode fornecer um modo de leitura da

atualidade. Mas é preciso explicar o que ele entende

como modo de leitura. Para Said (2004), “Os textos

inertes permanecem em suas épocas: aqueles que se

contrapõem vigorosamente às barreiras históricas são

os que permanecem conosco geração após geração”

(p. 55). É este exatamente o caso de Freud.

Se o pai da psicanálise foi uma espécie de

explorador da mente, foi também,