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Sobre

um livro

escandaloso

Claudia Moreira

[Psicóloga, psicanalista, doutora em teoria psicanalítica UFRJ]

Na tentativa de responder à pergunta feita por

Márcia Rosa - qual livro proibido você leu escondido?

-, duas lembranças me vieram à tona, dois livros em

particular:

Feliz ano velho

, de Marcelo Rubens Paiva,

e

Olga

,

de Fernando Morais.

Li

Feliz ano velho

muito nova e de uma

sentada só. A história contada ali se parecia em

tantos aspectos à história de qualquer adolescente:

o encontro com o sexo; as primeiras experiências

amorosas e seus fracassos; o uso de drogas; as festas;

as questões existenciais típicas. Mas o fio da trama era

o acidente que o deixaria tetraplégico, a recuperação,

a adaptação à sua nova condição. Numa escrita não

linear, Marcelo vai e volta ao seu passado, conta

memórias, relembra fatos aparentemente banais,

se recrimina, sofre com o vazio deixado pela falta

de notícias de seu pai. Conta com detalhes o dia

em que a polícia chegou em sua casa para levá-lo.

O deputado Rubens Paiva desapareceu durante o

período da ditadura militar no Brasil. Ao final do

livro, ele escreve que agora era outro Marcelo, o

Marcelo Rodas, e que ele teria que se virar com isso.

A história contida ali era ao mesmo tempo linda,

triste, contada com humor e delicadeza. Marcelo

não era herói, nem exemplo, mas era bem melhor

que isso.

O outro livro que li escondido foi a biografia

de Olga Benário, judia comunista entregue a Hitler

pelo governo Vargas. Essa frase aparece na primeira

capa do livro. Li esse livro quando tinha 16 anos.

E fiquei completamente tomada pela história. Nos

dois sentidos, porque o livro é sim uma aula de

História, mas a história de Olga Benário Prestes é

inquietante, marcante. Apaixono-me por Olga por

sua coragem, por sua fortuna. Fico assustada com as

cenas de tortura descritas ao longo do livro, com a

deportação de Olga - grávida de Luís Carlos Prestes

- para a Alemanha e termino de ler o livro arrasada

com a carta que ela deixa para sua filha e seu marido

antes de partir para o campo de concentração nazista.

Dois livros, duas biografias, e muitos anos

depois estou às voltas com a escrita da tese de

Doutorado. Meu projeto inicial era trabalhar o que

intitulei “As figuras de Deus em Lacan”. “Deus é a

face feminina do gozo”, “Os deuses são do campo do

real” e “Deus é inconsciente”. Queria prolongar os

estudos realizados no Mestrado sobre religião e dar

um passo à frente, procurando examinar os aforismas

lacanianos. Mas o caminho não foi bem assim.

Logo no início da pesquisa, ao ler o seminário

O avesso da psican

á

lise

, me volto para o estudo de

O homem Moisés e a religião monoteísta

(1939): o

que era para ser uma parte do trabalho, vai ficando

maior e, quando me dou conta, descubro que não

há uma linha sequer que tenha escrito que não esteja

relacionada ao

Moisés

de Freud. Eu não consegui

sair desse livro. O

Moisés

de Freud é um tesouro.

Para muitos, um livro proibido. Antes mesmo de

sua publicação, já causava alvoroço: Freud recebera

inúmeros pedidos para que seu livro não fosse

publicado.

De certa forma, esse foi o livro proibido que

li. Aqueles outros dois livros não eram proibidos.

Digamos que o fato de serem inapropriados para

minha idade o tornavam proibidos. É diferente de

um livro que recebe um anátema. Quando de sua

publicação,

Moisés

foi execrado, massacrado por

todos os lados. A obra conseguiu desagradar judeus

e não judeus. Martin Buber referiu-se ao livro como

um gesto lamentável da parte de Freud, um livro