Maricia Ciscato
Me foi designada esta interessante função de um “mais-um ad hoc”, um mais-um “para esta finalidade”, a desta mesa. Se cabe ao mais-um fazer circular o efeito de sujeito no cartel, como afirma Miller, ele não o faz sem também se colocar a trabalho na questão que o cartel lhe provoca.
Miller nomeia o produto de um cartel como uma “elaboração provocada”.[1] Trata-se aí da proposta de trabalhar para a extração de um pequeno naco de saber, de uma elaboração que permita a cada um seguir avançando em seu percurso. Para mim, é um privilégio estar sendo provocada então, a elaborar, a partir dos produtos do cartel realizado por esta diretoria. Os textos de vocês me produziram questões, que retorno à mesa, não como perguntas a serem respondidas, mas, na melhor das hipóteses, para seguirem sendo trabalhadas por cada um, inclusive por mim.
O AE e o ódio à democracia
Começo com um ponto levantado no texto de Paulo. Paulo retoma a radicalidade da proposta de Lacan na “Proposição…” no que diz respeito ao lugar do AE. Diz Paulo: “O AE pode advir do tempo 0”, pois Lacan desfaz os supostos degraus a serem escalados um a um até uma imaginária ascensão a uma posição superior (AP, AME, AE). Isso provocou intestinas reações à época, pois, nas palavras de Paulo, introduziu uma pequena “catástrofe” na ordem vigente das sociedades psicanalíticas: a de que qualquer um (não importa quem) pudesse se autorizar analista, precisando, para isso, apenas testemunhar sobre a conclusão de seu percurso de análise.
Essa forma de Paulo apresentar a pequena catástrofe na ordem hierárquica, que Lacan instaurou no coração da Escola, ressoou em mim de várias formas. Numa delas, levou-me a outras áreas, ao me fazer recordar o argumento central de Jacques Rancière em seu livro “O ódio à democracia”. Rancière argumenta que há um ódio à democracia que decorre da radicalidade de seu princípio: a de que a qualquer um cabe a legitimidade política – sem garantias prévia a sinalizarem o merecimento de um lugar a partir de um conhecimento prévio (ciência) ou de uma determinada condição financeira (riqueza) – ou ainda, acrescento diante do nosso caos atual, dos designíos de um Deus.
Entender a democracia tal como Rancière a interpreta significa, segundo ele: “entender a batalha que se trava nessa palavra: não simplesmente o tom de raiva ou desprezo que pode afetá-la, mas, mais profundamente, os deslocamentos e as inversões de sentido que ela autoriza ou que podemos nos autorizar a seu respeito.”[2][3]
Me parece que essa proposta poderia se aproximar da chave de leitura a que Paulo nos apresentou o lugar do AE na Escola, ou seja, em seu âmago, a democracia “implica catastroficamente que cada um (não importa quem)”, sem dinheiro, ciência ou Deus, possa ocupar um lugar fundamental no contexto político. Você, acha, Paulo, que poderíamos pensar a Escola, neste sentido estrito em que Lacan lança o AE ao seu cerne, como uma experiência radicalmente democrática, na acepção trabalhada por Rancière?[4]
Escola oásis
Seguindo com meu breve retorno à Rancière, me deparei novamente com um pequeno texto de Miller, que circulou nas vésperas das eleições francesas, em 2017, sobre um livro de Rancière intitulado “Em que tempo vivemos?” – o texto de Miller se chama “Jacques Rancière, uma política dos oásis”. Retorno, então, mais uma vez – movida pelo belo título do texto de Paulo, “Modifiquei o deserto do Saara” (o qual quero retomar ao final), e pela instigante proposta do texto de Andréa Reis –, aos oásis.
Aliás, Andréa, devo à sua retomada da ideia dos oásis mais uma volta minha em torno da diferença entre “esperança e aposta”, conversa nossa antiga. Você ressalta em seu texto que os oásis definitivamente não são lugares de esperança. Eu concordo, mas isso só agudiza seu valor da aposta, necessária, de seguirmos abrindo brechas no presente, para respirarmos no agora, e não no amanhã, não acha? É a própria ideia do túnel que você retoma. A esperança visaria à luz no fim do túnel e a aposta à luz no túnel? Seria possível fazer, do túnel, oásis?
Na leitura de Rancière, assim como na nossa, no tempo em que vivemos, o capitalismo “mais do que um poder se tornou um mundo”, não se trata mais apenas de um jogo de poderes, pois vivemos, andamos e respiramos nesse meio.[5] “Só digo [diz ele] que uma política de emancipação existe sob a forma da interrupção de um tempo normal ou talvez também de uma fenda, de uma ilha ou oásis que se faz dentro do tecido normal das relações sociais.”[6]
Em seu comentário, Miller afirma, como vimos com Andréa, que a “seu oásis, Lacan o chamava Escola”.[7] E retoma o Ato de Fundação, em que Lacan afirma sobre o termo Escola: “Ele deve ser tomado no sentido em que, em tempos antigos, significava certos lugares de refúgio, ou bases de operação contra o que já então se podia chamar de mal mal-estar na civilização”.[8]