“Modifiquei o deserto do Saara”*

Por Paulo Vidal

Por deslocar e atualizar incessantemente conceitos e palavras, o ensino de Lacan é quando muito localmente sistemático, como se nota rastreando o título AE, que surge na ata de fundação da EFP (1964). Nesta, a formação inclui 3 tempos: T1, ser membro; T2, ser AME e T3, ser intitulado AE. Conclusão da formação do analista, o AE é o titular, como se diz professor titular na hierarquia universitária. Na primeira versão da proposição, a nomeação AME é convite para se apresentar à qualificação AE, e persiste a ideia da formação de um analista cuja competência seria verificável. Publicada logo depois, a segunda versão disjunta AME e AE, o AE pode advir num T0. O que ocorreu entrementes? Durante a discussão da primeira versão, Valabrega objetou que o passe assim “instalará o não analista no coração da experiência analítica”, que o aforismo central da proposição “o psicanalista só se autoriza dele mesmo”, implica catastroficamente que “cada um (não importa quem) pode se autorizar a ser analista”. Lacan responde “que quer colocar não analistas no controle da experiência analítica”, só que não analista não equivale a não analisado. O passe é passagem a analista e não analista, ao analista em intensão corresponde na psicanálise em extensão o não analista, analisante por exemplo. Quem se apresente na extensão como “eu não penso”, cai no ridículo. Na lógica, intensão é a compreensão de um conceito, extensão designa os objetos que caem sob o conceito. Qual seria a extensão de “o psicanalista”? Questão que motiva a escola, ou seja, temos um analista, outro analista, mas nenhuma propriedade universal os subsome numa categoria. Pelo contrário, cada AE modifica a classe já existente dos AE, transmuta inclusive o sentido do termo. Basta que mude “um fio de cabelo” (Lacan). O que faz jus à distinção entre hierarquia e gradus: na Antiguidade, gradus (passo) designava o manual de prosódia do qual o sujeito se servia no difícil passo da criação poética. Quanto à hierarquia, conduz a categorias superiores os passos do sujeito que preenchem as demandas institucionais.

* Frase pronunciada por Jorge Luis Borges quando, em visita ao deserto do Saara, deixou escorrer
pelos dedos o punhado de areia que recolhera na mão.

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