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O problema surge quando, ao passar de cada um desses contextos ao conjunto que eles

formam, perguntamo-nos por que Lacan, que em sua língua dispunha de termos usuais e

bem-diferenciados (

fente

,

ouverture

,

scission

ou

division

, respectivamente), haveria optado

por utilizar o mesmo vocábulo em todos esses casos, inclusive forçando às vezes o campo

semântico que lhe é próprio. Aqui, a pergunta pela

intenção

de Lacan se impõe com todo

seu peso.

Antes de indicar que resposta esbocei para esta pergunta, creio indispensável fazer um

esclarecimento.

Em francês, o substantivo

fente

e o verbo

fendre

possuem a mesma raiz latina que têm

o substantivo

hendidura

e o verbo

hendir

(ou

hender

) em castelhano. Linhagem idêntica

acredita-se que tenham os termos hendija (fenda) e rendija (fresta). Todos eles assinalam

a ação ou o efeito de abrir ou rachar algo

sem dividi-lo completamente

. Por sua vez, tanto

os termos franceses scission e scinder, como seus correlatos castelhanos

escisión

e

escindir

surgem de uma raiz diferente que – além de aparentá-los aos ingleses

splitting

e

split

, e com

os alemães

Spalt

(ou

Spaltung

) e

spalten

– os refere ao ato de abrir ou cortar algo,

mas sem

especificar se o divide totalmente ou não.

Atender a essas distinções seria, por acaso, fiar fino demais?

[2]

Talvez sim, talvez não. Mas

se pensamos que essas precisões de Lacan darão lugar à discussão da estrutura topológica do

sujeito, a resposta se inclina um pouco mais em direção ao não.

Em meu entender, a escolha do termo

fente

e seu emprego sistemático (ainda que ao preço

de forçamentos expressivos) permitem conjeturar em Lacan uma intenção dupla.

Por um lado, procura esclarecer

que o que Freud denominava

Ichspaltung

(que os ingleses

traduzem como

splitting of the

ego

e que costumamos traduzir

por

cisão do eu

) não há de ser

entendido como uma divisão

ou uma fragmentação do eu (ou

do sujeito, segundo a leitura que

façamos do termo

Ich

), mas como

uma fenda, quer dizer, como o

surgimento de uma abertura que

não o segmenta em partes.

Por outro lado, permite outorgar

um relevo conceitual à noção de

fenda, que pode ser considerado um antecedente necessário dos desenvolvimentos relativos

ao inconsciente pulsátil no

Seminário 11

e às diversas manipulações do toro esburacado que

povoam o ultimíssimo ensino de Lacan.