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sequer, sê absolutamente solitário,

absolutamente silencioso. Então o

mundo irá oferecer-se a ti para se

fazer desmascarar, não pode agir

de outro modo; sob o teu encanto,

desenrolará os seus anéis a teus pés”.

Tal prenúncio pode nos ajudar

também a pensar sobre a figura

do leitor, de um modo geral, num

universo saturado de tantos livros.

Tudo parece já ter sido escrito e

guardado em inúmeros volumes que

se amontoam nas prateleiras. Mas

como os livros foram parar ali nesta

virtual biblioteca? Não importa o

tamanho das estantes, o certo é que

há hoje uma tensão jamais existente

entre livro e leitor, abalada mais do

que nunca pela tecnologia digital.

Qualquer livro que seguramos

nas mãos não deixa de ser também

um sólido de três dimensões que

podemos apreciar em diferentes

posições, lugares e perspectivas,

como se estivéssemos diante de uma

verdade que requer ser tomada por

diversos lados.

Sempre há algo de inquietante

quando se observa alguém que lê

um livro. Um sujeito ali isolado do

mundo, concentrado, entretido em

sua leitura, separado dos outros em

volta na sua vida cotidiana, quase

promovendo ali um desajuste social

no ambiente.

Porém, atualmente, os tempos

são outros. Diante das inovações

tecnológicas esse leitor que carrega

sempre algum aparelho nas mãos –

seja ele um

smartphone

, um

tablet

ou

um

kindle

– pode andar por aí sem

se preocupar se é um desajustado por

ficar lendo a tela destes novos

gadgets

pelos quais somos bombardeados

hoje, quase todos os dias. Ele pode

caminhar agora e levar consigo sua

infinita biblioteca de babel no bolso

ou na mochila.

Mas como disse Kafka, não é

nem mais necessário sair de casa,

solitariamente estamos conectados

com o mundo. As prateleiras das

casas estão cada vez mais vazias, a

memória do computador suporta

hoje milhares de downloads, e

mesmo que quiséssemos, não

conseguiríamos ler o que temos à

nossa disposição.

No entanto, o leitor do século XXI

é aquele que consegue estabelecer as

conexões fundamentais. Para tanto,

afinal, o que é preciso ler? O que

aconteceu com as enciclopédias?

Onde elas foram parar? Mas, antes

da pergunta derradeira: ‘o que é um

livro?’, cabe-nos, como psicanalistas,

outra pergunta: como ler hoje

Lacan?

Do mimeógrafo aos

gadgets

Aprimeira geração de psicanalistas

que se formaram depois da morte de

Lacan, mas principalmente aquela

do final do século XX, fora da

França, entrou em contato com sua

obra de um modo muito peculiar.

Os primeiros Seminários até então

publicados (11, 7, 1, 3 e 20) eram

escassos e foram aparecendo aos

poucos; os outros, muitas vezes eram

versões piratas e não autorizadas.

A obra de Lacan, rarefeita na

época, apresentava para aqueles

leitores em particular imensos

buracos negros teóricos que forjaram

leituras, inclusive, muito criativas,

para não dizer também difamatórias,

ou quem sabe, ingênuas, mas que

com o passar dos anos e de outros

escritos e seminários estabelecidos

foram se encaixando como em um

quebra-cabeça...

A psicanálise como prática não é

apenas uma questão de escuta, ela é

também uma questão de leitura. No

campo da linguagem a psicanálise

toma seu ponto de partida na fala,

mas ela se refere, no final das contas,

a uma escritura. Porém, há uma

distância entre falar e escrever. E é

nesta distância que Lacan operou

sua clínica e seu ensino.

Enfim, a psicanálise explora

esta estranha solidariedade entre

a forma que se lê e a forma que se

escuta. Afinal, a leitura do sintoma

é a posição de partida de um

psicanalista. E ser lacaniano, mais

ainda, significa sucintamente ler

Lacan com rigor e desejo.

Rodrigo Camargo

*

* Analista praticante, professor convidado e membro

da Seção Clínica da CLIPP-SP.

1

Lacan, J. (2003). “O aturdito”. In

Outros escritos

.

Rio de Janeiro: JZE, p. 448