A extração como função da escrita em Vista Chinesa: “são os detalhes vão me livrar do todo”[1]

Por Clarisse Boechat

“A escrita é corpo para mim”
Tatiana Salem Levy

“Vista chinesa”, livro de Tatiana Salem Levy, tem como ponto de partida o caso real de estupro ocorrido a sua melhor amiga, Joana Jabace. Ele expõe a densa tessitura entre trauma, luto, memória, amor, esquecimento: a re-escrita de um corpo violado pela catástrofe. Vida e morte se enodam em sua escrita, a linguagem se lapida para dizer desse inominável. A escrita como tratamento a esse inominável foi o ponto que me interessou levar para a conversa com Tatiana, na Noite promovida pela Diretoria de Biblioteca, junto às colegas Ana Beatriz Freire e Maria Inês Lamy.

Existe uma discussão conhecida na literatura, em especial pós-Shoah, que interroga de que modo um desastre se escreve se ele não admite por definição, escrita ou representação. Como se a violência extrema conjugada com a ausência de sentido, transbordasse sempre, resistindo à escrita e revelando um caroço de real que subsiste à representação. Ao ler “Vista Chinesa” eu interrogava o modo como a escrita de Tatiana se moldava perante o excesso inapreensível do estupro. Pareceu-me genial que nesta cena, excepcionalmente, a escritora tenha sido levada a encontrar uma solução estética, um recurso narrativo que foi o abandono da pontuação. Isso só acontece ali. O traumático se escreve como uma devastação em bloco, monólito sem fissura: Continue lendo “A extração como função da escrita em Vista Chinesa: “são os detalhes vão me livrar do todo”[1]”

Noite da Biblioteca com Armando Freitas Filho – Apresentação

Apresentação – Por Viviane de Lamare

Gostaria em primeiro lugar de agradecer o convite feito por Ana Beatriz para coordenar a atividade da Biblioteca sobre o tema do X Enapol – o Amor.  Graças ao convite feito por Jeanne Marie Costa Ribeiro a Armando Freitas Filho poderemos ouvir a leitura de seis poemas escolhidos pelo próprio autor. Quero dizer que é uma honra coordenar esta conversação, já que o poeta é um dos mais importantes de nossa literatura.

Faço agora uma breve apresentação do poeta.

Armando Freitas Filho nasceu no Rio de Janeiro em 1940. Poeta decidido desde muito jovem, aos quinze anos já escreve. Foi um leitor encantado por Manuel Bandeira e nos diz o porquê:

“Quando eu era adolescente, ganhei um disco de vinil. Do lado A tinha Manuel Bandeira, que naquela época era o poeta consagrado com justiça, e do lado B havia Carlos Drummond de Andrade, que era considerado difícil, encrencado”.

Passa a ler Drummond: “O que me fascina em Drummond é que mais changeant do que ele não há. Drummond tem índice de releitura infinito e, com o passar da vida, a poesia dele vai se transformando com você. Parece que aqueles textos que você conhece há anos ganham um significado atual, moldam você, continuamente. Porque, além de tudo, a figura dele é um claro enigma”.

Bandeira, Drummond e João Cabral – a Santíssima Trindade como os chamava, ou os três mosqueteiros, incluindo Ferreira Gullar como D’Artagnan.

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Noite da Biblioteca – A Poesia de Armando Freitas Filho

Isabel Lins

 Queria agradecer a presença de todos e de todas. Não vou dizer todes, não esperem isso. E agradecer especialmente a Ana Beatriz Freire, diretora da Biblioteca, por este convite. Achei uma felicidade convidarem o poeta Armando de Freitas Filho para escutarmos e comentarmos nesta noite, que também é preparatória para o Enapol. Então, aqui ficam os meus agradecimentos.

Eu queria ainda, fazer uma pequena homenagem à nossa querida Leda Guimarães, que faleceu há pouco. Aliás, a primeira data para este encontro coincidiu, infelizmente, com a morte dela e a Escola entrou em luto. Leda foi diretora da Biblioteca na gestão de Fernando Coutinho. Foi uma diretora muito produtiva, teve muita iniciativa e eu me lembro que no Enapol daquele ano a Biblioteca foi escolhida a melhor do Brasil – ou da América Latina, não posso precisar –, então queria prestar essa homenagem a Leda que tanto se dedicou ao pensamento psicanalítico e à nossa Escola.

Resolvi compactar esta minha fala porque, sobre Armando, a gente teria um mundo de palavras a usar, pronunciar, falar. Vou, pois, me restringir, até por uma questão de tempo, já que ainda teremos a fala de Paulo Vidal, teremos ainda alguma recitação de Armando e colegas que queiram se manifestar.

Há um provérbio espanhol que Octavio Paz (Marcel Duchamp ou o castelo da pureza, terceira edição, 2002, p.24) cita no seu livro sobre Marcel Duchamps, que diz assim: “Não há nada escrito sem o gosto. Com efeito, o gosto se recusa ao exame e ao juízo: é um assunto de provadores”.

Na língua Hindu, a essência da palavra Poesia remete a sabor.

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Noite da Biblioteca – Desde alguns poemas de Armando Freitas Filho

Por Paulo Vidal

Experiência muito diversa da leitura silenciosa, ouvir esses poemas assinados pela voz de Armando Freitas Filho ressalta que a poesia faz dançar as palavras, faz dançar o som com o sentido, envolvendo nas palavras do poema Absoluto Azul “voz e corpo”, o corpo falante. Ao passo que, nos discursos correntes, o som serve para discriminar o sentido – você disse pata ou lata? -, a poesia injeta som no sentido, resto cantante (Celan) que fura o sentido.

Há experiências cujo relato solicita o fazer poético, entre elas inegavelmente o amor. Ainda em Absoluto Azul ouvimos “e como o amor se lança/ sem esperar a ponte concluir/seus lances, cálculos”. O amor elabora um saber tomando por ponte significantes do Outro, só que estes não levam à margem oposta, tornando necessário que o sujeito coloque algo de seu, invente um saber singular que ressoe no corpo um excesso não formalizável via “cálculos”. Em vez da cor azul absoluto, temos absoluto azul. Ora, o que é se lançar no absoluto, naquilo que só tem relação consigo mesmo, senão sair de si para o Outro, uma alteridade infinita? Entre centro e ausência, a poesia de Armando cria uma erótica não casta.

Apelidemos de vida, gozo, tal excesso que não cabe de todo no texto, que perturba a fluidez usual da palavra nesses poemas, multiplicando as repetições, paronomásias, aliterações, enjambements. Se o mavioso canto do rouxinol classicamente figurou a arte poética, o rouxinol faz aqui a língua gaguejar, explorando uma tensão entre pares antitéticos: mecânico/vivo, inorgânico/orgânico.Antes de engenheiro com seus cálculos, o poeta é escultor, tenta cinzelar o corpo para que dele emerja a carne no poema: “No seu corpo/ vestido de cetim/ tão sentido como este desejo/ segunda pele que desliza/ sobre sua nudez/ em carne viva/ à beira do sangue e do colapso/ eu me debruço/ álacre, mas minha fome/ nem sequer alcança ou arranha/ o escudo de esmalte/ da sua beleza, não atravessa/ seu corpo de cromo/ o lacre/ escarlate do sexo, o nicho/ de verniz e veludo roxo/ onde o beijo/ da minha boca sonha aninhar-se”.

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Cartel Psicose Ordinária – atravessamentos e dissolução

Por Doris Rangel Diogo – Membro da EBP/AMP

Compartilho uma experiência no cartel Psicose Ordinária, inscrito em 2019 na rubrica “Clínica: teorias e práticas”. A contingência da pandemia favoreceu encontros dos participantes, impulsionando o cartel, embora a modalidade de reunião virtual já tivesse sido experimentada.
Cada cartelizante vinha desenvolvendo sua pesquisa e os encontros eram frequentemente atravessados por casos clínicos dos participantes ou publicados, e também por textos em torno do tema. No início de 2021, uma cartelizante que estava trabalhando acontecimento de corpo na psicose ordinária interveio com um recorte clínico que despertou vivo interesse nas demais participantes. Naquele momento, o cartel estava se dedicando ao tema do corpo no ensino de Lacan, a partir do incorporal, em Radiofonia. O caso se impôs com uma questão do analisando, que fez com que a pesquisa se voltasse para os limites do binarismo sexual orientado pelo falo como significante da diferença sexual, a favor da pluralização dos modos de gozo. Interrogando o trans, o cartel se transformou e a mesma cartelizante apresentou o trabalho na Jornada de Cartéis, em março, para o qual contribuiu o entusiasmo, não sem o sinthoma, de cada cartelizante. Os efeitos da Jornada, a contingência de um debate sobre o fenômeno trans no XXIII Encontro Brasileiro, bem como a transmissão nas escolas da AMP em torno da assunção da designação//nomeação trans, contribuíram para uma elaboração provocada que levou à reconfiguração do cartel em torno desse tema que, a cada dia, vem ganhando mais fôlego, tanto em sua dimensão clínica quanto epistêmica e política.
Na função de mais um, interroguei o rumo do cartel cujos temas se deslocaram para os modos de gozo, binarismo e pluralismo, feminização da cultura. Em encontro recente, concluímos que o cartel sofreu um reviramento e que, assim sendo, na função de mais-um, propus sua dissolução, não sem o convite para que cada uma decantasse um produto sobre Psicose ordinária para a próxima Jornada. No momento de selar a dissolução, que implica em perdas, houve um movimento entre nós para dar continuidade ao cartel com outro nome, já que o desejo de trabalhar permanecia vivo entre nós. Diante da demanda, advoguei pela dissolução do cartel e, como ato contínuo, pela destituição do mais-um, o que não impediu que outro cartel viesse, imediatamente, a se anunciar com os mesmos participantes sendo que, para a função do mais um, outro cartelizante foi convidado. Aliás, esta passagem também foi alvo de interrogação sobre os critérios de escolha do mais-um, pois, neste cartel, dos 5 participantes, apenas 2 são membros da EBP.
Apreciando o ocorrido, destaco que o cartel Psicose Ordinária realizou uma trajetória, possibilitando uma elaboração provocada e a transmissão da psicanálise, e que sua dissolução incidiu como um ponto de basta.

PSICOSE ORDINÁRIA
• Rubrica: Clínica: teorias e práticas

o Doris Rangel Diogo (Mais-Um) – Membro EBP/AMP – Psicose ordinaria – uma hipótese a partir da transferência
o Mirta Fernandes – Cartelizante – Incidências do acontecimento de corpo na clínica psicanalitica
o Vera Davet Pazos – Cartelizante – Como operar na transferência na psicose ordinária – o lugar da escuta na neotransferência
o Vanda Almeida – Membro EBP/AMP – Das externalidades ao gozo do Um e o operar do analista
o Romana Costa – Cartelizante – Psicose ordinária e amor louco

Rio de Janeiro, 8 de setembro de 2021.

Cartel Psicose Ordinária – um revirão.

Por Mirta Fernandes

Um caso clínico em torno da questão de gênero, uma interrogação sobre a hipótese diagnóstica de uma possível psicose ordinária e uma convocação provocada pelo burburinho das questões de gênero, que vem se fazendo presente no âmbito de nossa contemporaneidade, trazem muitos pontos de discussão para o cartel. Provoca no cartel um certo rebuliço ao interrogar e mobilizar todos os participantes em torno dessa questão. De certa forma, esse mergulho desviava cada um de sua formulação inicial de pesquisa e do texto base do cartel, introduzindo novas e até então inéditas pesquisas e leituras, num trabalho conjunto, instigante, fazendo arder a chama do desejo num trabalho de cada uma para todas. “O que desse caso, ou da questão colocada fez essa engrenagem se movimentar intensamente e estar aí pulsando de uma forma que nunca havia vivido numa experiência de cartel?” – uma pergunta que me faço. “Aconteceu uma surpresa para todas” – fala de uma cartelizante. O cartel se TRANSforma, ganha nova vida. A apresentação do caso na última Jornada de Cartéis coroa esse revirão, abrindo outro caminho de pesquisa para um novo cartel.

Rio, 29 de agosto de 2021

Pajubá e a Fulô de Lalíngua

Quantas línguas há na nossa língua mãe? Além daquela do pai, da norma culta; e a da mãe, de ternuras ancestrais, há ainda, muitas mais, muito mais no cristal da língua, nesse mosaico em constante mudança que nos constitui. Nele, cabem até mesmo os brados raivosos dos paranoicos no poder. Boas mesmo são as línguas que trazem fragmentos de um passado perdido, de indefiníveis certezas. Somos transportados a uma zona da memória impossível de localizar. São elas que habitam a tendência irresistível para alguns de fazer, de uma flor, fulô e para outros, para quem flor é flor, ainda assim de bater com o pé no chão quando ouvem “pisa na fulô, pisa na fulô…

 Que memória é essa? A mesma que Proust nos leva a sentir, mesmo não tendo ideia do que seja uma Madeleine. Basta mergulhar nossos fragmentos sonoros no caldeirão da língua quando dizemos, meu dengo, meu araçá.

Para Freud, a memória não tem fim. Melhor, não tem limites. A ideia de um estoque finito, como pensa a neurologia, mostra seu caráter de ilusão quando a mesma ciência não cessa de destacar como as conexões neuronais são incontáveis por se fazerem e refazerem sem cessar. Freud não se interessa pelo arquivo morto. Que nossa biblioteca de memórias seja enorme, de acordo. Mas o que conta, o que desperta e faz sonhar são as memórias do esquecido. Valem as que não se encaixam no verbo da cidade, andarilhas errantes, mais neuras que neuros.

Para tudo que não coube na língua pública e nem na privada, mas apenas ficou como ressonância, ritmo, cor, Lacan inventa um nome, fazendo cantarolar sua langue com o termo lalangue. Na nossa língua um tanto dessa vibração se vai, mas que seja, digamos em português lalíngua. É com ela que em última essência lida o psicanalista ao fazer os fragmentos de história fora da história de cada um falar.

Quanto de alfabestização é preciso para que falemos em bom português, valorizando os encontros consonantais em chiados e erres prolongados? Quanto se encolhem nossas vogais quando dizemos “dentro de mim” em vez de “dendimim”? “Muito prazer” em vez de “ôba!” e assim por diante?

Nessa distância entre lalíngua e a língua oficial brotam dialetos. Vivi um deles por anos, o dialeto médico, com seu jargão entre radicais gregos e latinos, tendo um termo para qualquer evento a fim de evitar que o paciente saiba que dele falam como de uma coisa. De “hanseníase” para lepra ou do atual “cuidados paliativos” para fim de linha, o jargão médico sempre me deu a impressão de um modo pretensioso de esconder a morte ao preço de uma mortificação da linguagem.

Esse número do Radar do analista cidadão busca o encontro com outro dialeto, quase o avesso daquele do médico, o pajubá. É o dialeto dos trans e de sua rua, reinjetando lalíngua na língua oficial, sexualizando a linguagem e falando a seu modo da vida e da morte.

A ideia partiu de Maricia Ciscato, mais especificamente de seu encontro com as falas de Amara Moira que é, ela própria, ponto de encontro entre o pajubá a experiência trans da rua, prostituta que é ao reverberar na ponta de sua língua, tanto o pajubá das ruas quanto, em sua tese de doutorado, as onomatopeias de Joyce.

Conversando com Maricia e com Veridiana Marucio, vimos como podemos aprender com o pajubá um modo de articular passado, presente, interdito e dito e, talvez, alguma coisa do que ocorre em nossa clínica se ilumine por ele. Basta que se ouça Amara em pajubá para que sejamos transportados a essa periferia da língua em que localizamos nosso trabalho e onde ecoam os terreiros, talvez de modo próximo e distinto daquilo que Lélia Gonzalez chama de pretuguês.

Além do dialeto médico, tenho vivido há um bom tempo no lacaniano. A trama de palavras pacientemente tecida por Lacan ao longo dos anos para nos levar o mais próximo do calor dos acontecimentos, pegou muita friagem no caminho ao vir para nossas terras, não apenas perdeu sabor, mas ganhou uma ossatura que mimetiza demais a do francês, nos levando a dizer coisas estranhas como “da ordem de…”, ou “objeto pequeno a” com a maior naturalidade. Meus votos são os de que esse Radar abra os ouvidos dos que usam os termos de Lacan como usavam os médicos de meu passado, para a força e virulência que tinham em seu tempo, como os termos do pajubá têm, hoje, no nosso. 

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