Noite da Biblioteca – A Poesia de Armando Freitas Filho

Isabel Lins

 Queria agradecer a presença de todos e de todas. Não vou dizer todes, não esperem isso. E agradecer especialmente a Ana Beatriz Freire, diretora da Biblioteca, por este convite. Achei uma felicidade convidarem o poeta Armando de Freitas Filho para escutarmos e comentarmos nesta noite, que também é preparatória para o Enapol. Então, aqui ficam os meus agradecimentos.

Eu queria ainda, fazer uma pequena homenagem à nossa querida Leda Guimarães, que faleceu há pouco. Aliás, a primeira data para este encontro coincidiu, infelizmente, com a morte dela e a Escola entrou em luto. Leda foi diretora da Biblioteca na gestão de Fernando Coutinho. Foi uma diretora muito produtiva, teve muita iniciativa e eu me lembro que no Enapol daquele ano a Biblioteca foi escolhida a melhor do Brasil – ou da América Latina, não posso precisar –, então queria prestar essa homenagem a Leda que tanto se dedicou ao pensamento psicanalítico e à nossa Escola.

Resolvi compactar esta minha fala porque, sobre Armando, a gente teria um mundo de palavras a usar, pronunciar, falar. Vou, pois, me restringir, até por uma questão de tempo, já que ainda teremos a fala de Paulo Vidal, teremos ainda alguma recitação de Armando e colegas que queiram se manifestar.

Há um provérbio espanhol que Octavio Paz (Marcel Duchamp ou o castelo da pureza, terceira edição, 2002, p.24) cita no seu livro sobre Marcel Duchamps, que diz assim: “Não há nada escrito sem o gosto. Com efeito, o gosto se recusa ao exame e ao juízo: é um assunto de provadores”.

Na língua Hindu, a essência da palavra Poesia remete a sabor.

Foi então, por gosto pela poesia e em busca de sentir o sabor que os poemas de Armando de Freitas oferecem, que aceitei esse convite da diretoria da biblioteca da EBP, na pessoa de sua diretora Ana Beatriz Freire, de participar desse evento. Evento tornado possível pela colega Jeanne-Marie Costa Ribeiro a quem devemos o contato feito com o poeta Armando de Freitas Filho, seu amigo.

Vou ler para vocês um pequeno texto que Heloísa Buarque de Holanda gentilmente me enviou falando sobre o poeta Armando, também seu amigo:

“Ele é um poeta que se faz pelo extremo rigor na composição. A técnica é o real assunto dele. O mundo é apertado e preciso. Lápis com ponta afiada. Escreve à mão e depois digita. Refaz os poemas até a perfeição formal. Sonha com a palavra certa. Conta milhares de vezes que Carlos Drummond deu um livro autografado para ele quando muito pequeno ainda. O universo da poesia dele é o universo mínimo onde vive e se move. Poucos amigos, grandes mestres na cabeça o tempo todo. Suas amizades são intensas e ciumentas.”

Numa entrevista concedida a Letra Freudiana em 2010, ele disse: “A ficção não é menos verdadeira do que a confissão ou vice e versa. Uma potencializa a outra, dependendo do acaso do momento, embora um pouco de cálculo seja inerente às duas. Meu processo de criação tem poucas diferenças do meu modo de viver.”

No Seminário livro III (Segunda Edição corrigida, 1988. Foi digitalizada para PDF em 01/05/2017, página 94) de Lacan lemos a seguinte frase: “A poesia é criação de um sujeito que assume uma nova relação com o simbólico”, o que quer dizer, um sujeito que dá margens a uma liberdade única de fazer uso de uma linguagem absolutamente singular. De construir ou de desconstruir a língua. Penso de imediato em duas coisas: lalangue e na criação onírica. Nesta criação, a onírica, podemos ser outro, sermos múltiplos, um navio pode navegar em terra, a lua pode se confundir com o sol, um anão se tornar gigante, ou simplesmente podemos, mesmo sem asas, voar. É o imaginário solto, desprendido do simbólico, tornando possível uma revolução no real da língua. O cristal se fraturou e o nó foi desatado.

Enquanto lalangue, a poesia revela uma língua de memórias, quebrada, mas sonora, desmembrada, sem sentido, afetado que é o poeta por um corpo marcado, que dói, que machuca e que tenta por isso mesmo falar. Um corpo que pulsa, que tamborila, que demanda se expressar, a nos lembrar vagamente alguma entidade de candomblé. Só que na poesia, a prevalência é das palavras, das letras, mas a musicalidade permanece. A “entidade” dos poetas é a sua língua, uma possessão de outra ordem, de outra natureza, fruto da liberdade que faz dele, um outsider, um fora das leis gramaticais e sintáticas. O poeta sai das normas, das conveniências sociais, do já estabelecido, é aquele que se deixa surpreender pelos deuses e pelo acaso.

No entanto, isso não se choca com uma poesia arquitetada, elaborada, estruturada, como é o caso na obra de Armando. Ele procura o formal sim, mas não para se engessar – é bem o contrário – teme ficar cristalizado, mas para atingir o ápice de sua criação, até que o gosto seja de seu agrado, até que o corpo seja saciado pelo sabor que emana de suas palavras.

Aliás, corpo é um significante que perpassa, que atravessa toda sua poesia. Cito dois trechos, o primeiro está em “Eu conheço o seu começo”.

“…no meio de suas pernas: anéis de cabelos/ anelos e nós se desmancham / em nada ou nódoa/ por todo o lençol do corpo/ nu e amarrotado: / nós aqui somos todos laços/ e nos rasgamos/ devagar-poro por poro; rumor de sedas/ ou de uma pele toda feita/ de suor e suspiro….

No poema Amor. “Foi de madrugada. Mas qual? / Isso fica no segredo eterno do corpo/ e das madrugadas de muitos coitos/ e se resolve no dia 23 de maio de 1991. / E aí sim a manhã dele foi a manhã do mundo.” sai do infinitamente particular, que se amplia e torna-se manhã do mundo.

Corpo-lençol, corpo pele, corpo que secreta segredos, corpo que se entreabre, corpo que se deixa penetrar, corpo que se rasga, corpo nu, corpo amarrotado, pele que se franze e se rasga, corpo e voz que atravessam a vida, o oceano e o mar aberto, clamando sempre pelo amor, que se sucede como vagas nesse mar por onde adentrou o poeta.

Rio de Janeiro, 23 de Abril de 2021
Compartilhar
Rolar para o topo