«Uma mulher bem calçada» – a mascarada de Maurice Bouvet*

Por Ana Martha Wilson Maia (EBP/AMP)

A sexualidade feminina foi o tema que esteve no centro dos debates entre os analistas nos anos 20-30, como introduziu Ângela. Esse movimento que chamamos hoje de «A querela do falo» resultou na produção de uma série de publicações de casos clínicos e de elaborações teóricas que se encontram como referência na obra freudiana e no ensino de Lacan.

Ao investigar as teorias sexuais infantis, Freud (1908) inicialmente sugere a teoria da universalidade do pênis como único órgão sexual existente. Ele abandona esta teoria em 1923, quando substitui a primazia dos órgãos genitais por um elemento simbólico: o falo.

Assim, podemos considerar que seus textos de 1931 e 1933 – «A sexualidade feminina» e «A feminilidade» – são uma resposta aos analistas que insistiram em ler pênis no lugar do falo.

A referência a esses autores aparece muitas vezes no primeiro Lacan. Em sua proposta de retorno ao texto freudiano, ele aponta momentos de ruptura, desvios teóricos que acabaram por distanciar os pós-freudianos da teoria de Freud, sobretudo quanto à sexualidade feminina. No Seminário 4, a relação de objeto, a mulher está entre as questões que aborda, quando afirma a falta de objeto. «O objeto genital, para chamá-lo por seu nome, é a mulher. Então, por que não chamá-lo pelo seu nome? Portanto, foi com um certo número de leituras sobre a sexualidade feminina que eu me gratifiquei» (p.24) – ele diz. Continue lendo “«Uma mulher bem calçada» – a mascarada de Maurice Bouvet*”

Uma diferença sutil de grande alcance

Por Ana Tereza de Faria Groisman

Boa noite.

Minha contribuição diz respeito a dois pontos que destacamos do caso de Lucia Tower: o inconsciente do analista e o desejo do analista; dois pontos que podem ser lidos num mesmo eixo. 

Lucia nos ensina sobre o deslocamento, num percurso de formação, do desejo de tornar-se analista para o Desejo do analista; desejos quase antinômicos entre si e que, ao mesmo tempo, mantém uma relação paradoxal. Se de início poderíamos supor que logicamente um levaria ao outro, afinal, busca-se uma formação a partir do primeiro, logo percebemos que um é entrave para o outro. Jacques Alain Miller nos adverte que o desejo de ser analista é, no fundo, de qualidade bem duvidosa1.

Quando Lucia nos revela que o que a orientava era uma “atitude terapêutica desejável de infinita paciência e esforço de compreensão”, percebemos que tal atitude não estava aberta à contingência do encontro com a paciente; era um ideal terapêutico que a impedia de escutar algo da transferência. A reação contra-transferencial do acting out coloca em evidência sua porção de resistência ao tratamento. Mas, num movimento freudiano, Lucia não recua diante disso. Ao contrário, tira consequências daquilo que aparece como rasura no tratamento, como o que, ao se apagar, destaca a presença do inconsciente na cena. O que nos pareceu interessante de destacar nesse caso diz respeito ao fato de que, ao contrário dos teóricos da contratransferência, ela não vai buscar em sua paciente os motivos para seu esquecimento, mas sim em seu sintoma infantil, em sua histoeria. Esse acting faz irromper por trás da “atitude terapêutica desejável” uma “resistência prolongada ao abuso”, que não contribuía em nada para que a paciente se deslocasse de sua posição raivosa e paranóica junto a ela e possivelmente junto aos outros. Debruçar-se sobre seu esquecimento, fez vir à tona uma série de afetos até então desconhecidos por Lucia, possibilitando-lhe se retificar na cena analítica.

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As mulheres são melhores analistas? Em torno do caso de Lucy Tower

Por Ana Beatriz Freire

Trabalho resultado do Cartel para o primeiro encontro do Seminário Clínico 2021, formado por Ana Beatriz Freire, Ana Tereza de Faria Groisman, Marcia Zucchi, Maria Corrêa de Oliveira, Maria Silvia Hanna, Vânia Gomes (mais um).

Na “Conferência em Genebra” Lacan afirma: “Deve-se julgar isso entre as mulheres analistas. As mulheres analistas são as melhores. São melhores que o homem analista”1. Como observa Elisa Alvarenga sobre essa passagem em seu artigo2 “As mulheres analistas”: “É curioso notar que ele diz mulheres analistas, no plural, e homem analista, no singular”. Mais tarde, em 1980, Lacan dirá sobre as mulheres que são “[…] as melhores analistas, quando não as piores”.3

Sabemos que quando falamos de mulheres é sempre uma a uma, e no homem podemos, através da referência fálica, agrupar em um todo, em um conjunto que se forma pela exceção. Também sabemos que para Lacan, homem (no singular) e mulheres só podem ser situados na sua particularidade pelas fórmulas da sexuação, pelas posições sexuadas e não apenas pelo sexo anatômico como tal. A questão que podemos colocar com Elisa Alvarenga seria: como o significante falo, como significante concebido como semblante, é abordado por Lacan nessa distinção homem/mulher? Ou melhor, haveria diferentes semblantes que distinguiriam o homem das mulheres e que pudessem diferenciá-los na função de analista?

Nesse Seminário livro 10, interrogamos o que nos toca particularmente nos seguintes termos: será que há distinção entre homem e mulher na posição do analista? E, mais ainda, o que as teóricas da contratransferência nos ensinam?

Utilizamos o termo “teóricas” no feminino e no plural, pois como afirma Lacan no Seminário livro 10: “[…] se há pessoas que disseram alguma coisa sensata sobre a chamada contratransferência, elas foram unicamente mulheres […]. Foram as mulheres em sua maioria esmagadora, que ousaram falar da coisa e disseram coisas interessantes”.4

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Lucia Tower, transferência e desejo do analista

Por Maria Corrêa de Oliveira

A partir do caso de Lucia Tower, o cartel esboçou uma pergunta:

Quem é o caso?

O relato e o endereçamento das questões relativas ao processo analítico da paciente de Lucia Tower ou o próprio relato de seus impasses e entraves?

Recorremos ao belo texto da segunda lição do livro “Perspectivas dos Escritos” para nos determos no que Miller destaca sobre a fineza capturada na aprendizagem com o inconsciente. Uma fineza que também recobre a atenção aos detalhes, às sutilezas que comparecem, por exemplo, naquilo que poderia ser considerado uma singela escorregadela. 

Miller chama a atenção para a importância do analista se manter em contínua aprendizagem com a presença de seu inconsciente uma vez que “com esse nunca se está em dia”1. Uma posição advertida, que requer a humildade de um eterno aprendiz.

Freud é o mestre que nos ensina a nos determos a aprender com as sutilezas de um ato falho. Seguir aprendendo com seus lapsos mas, sobretudo, poder testemunhar sobre suas consequências e efeitos. Não seria essa uma das posições valiosas que se espera de um analista?

Com essa orientação é importante destacar o material que Lucia Tower disponibiliza ao se deter em seus tropeços.  Não se furta em dar seu testemunho, ilumina seus equívocos e os submete ao investigá-los. 

Partimos dessas ofertas, dos impasses de Lucia Tower, com um pequeno recorte que pudemos extrair sobre o desejo do analista.

Retomarei muito rapidamente a noção de contratransferência somente para ser uma via de passagem com a transferência e com o desejo do analista.

A crítica de Lacan ao conceito de contratransferência, denominada no Seminário 10 como “autocrítica interna”2, diz respeito à valorização excessiva no eixo transferencial do registro imaginário. Referendada no eu, a análise das resistências estava se apresentando como um parâmetro da técnica analítica, um cenário que serve como empuxo para que Lacan proponha a resistência como sendo do analista, e não do analisante.

O passo importante nesse cenário onde se dá a reviravolta lacaniana é a atenção dada por Lacan ao par transferência-contratransferência, no que essa duplicidade abarca: interesses narcísicos, identificação imaginária, relações pautadas no amor e no ódio.

Elementos que por si só já se apresentam como obstáculos ao processo analítico.

Serge Cottet, em seu brilhante livro “Freud e o desejo do psicanalista”3, dá a justa medida do quanto a concepção da contratransferência pode induzir ao que ele chama de “desvios” no sentido de uma identificação do analista com seu analisante. Uma identificação que pode, sobretudo, escamotear a responsabilidade do analista no que importa efetivamente ao processo analítico.

Fazendo referência à contratransferência como “a soma dos preconceitos, das paixões, dos embaraços e desconhecimentos do analista”4, Lacan sublinha que o que deve ser valorizado como função do analista em resposta ao amor transferencial da parte do analisando é o seu desejo. Desejo de que uma análise se oriente não somente com o firme propósito de seguir em seu curso, mas que siga, sobretudo, mediante o desejo que se orienta pelo que causa, tirando proveito do sintoma, das repetições e atualizações que comparecem no fenômeno da transferência. Desejo do analista que acompanha as entrelinhas dos significantes, rastros e pistas para o encontro com algo muito singular que comparece sempre de esgueira, algo como “encontrar a senha do sintoma”5.

No texto A direção do tratamento e os princípios de seu poder, de 1958, Lacan afirma o que já havia abordado no Seminário I: “não há outra resistência à análise senão a do próprio analista”6. Ao indicar que só há uma resistência em questão, Lacan também parece sustentar que o fenômeno a ser privilegiado no manejo clínico é só um, a transferência.

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Lucia Tower, a contratransferência e o desejo do analista

Por Marcia Zucchi

Uma questão contextual: conforme se lê no próprio texto de Lucia Tower1, a discussão em torno da contratransferência se intensifica nos anos 40, e basicamente é compreendida como “reações transferencias que os analistas poderiam ter em relação a seus pacientes”. De todo modo seu relato era então tomado como “indecoroso”, “embaraçoso”, “repreensível” (Tower, 1956-2004).

Como ela própria lembra, Freud já se referira à contratransferência, em 1910, mas orientando os analistas praticantes a ultrapassá-la: “Tornamo-nos cientes da contratransferência, que, nele, surge como resultado da influência do paciente sobre os seus sentimentos inconscientes e estamos quase inclinados a insistir que ele reconhecerá a contratransferência em si mesmo, e a sobrepujará.”(Freud, 1910)2 

O texto de Lucia Tower é riquíssimo na orientação a respeito dos primeiros debates em torno da própria transferência e da análise do analista, nos primeiros anos pós Freud. 

Mas destaco aqui um aspecto que me pareceu importante, levantado por Carlos Augusto Nicéas no seu artigo “Contratransferência. Psicanálise e Psicoterapia”3. Nesse artigo Nicéas comenta textos não de LT, mas de Margareth Little, outra das autoras mulheres que se dedicaram ao tema da contratransferência, destacando que esses textos eram tentativas de resposta às demandas  e sintomas da época.

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“Contratransferência” de Lucia Tower

Por Vânia Gomes

O artigo “Contratransferência” de Lucia Tower foi publicado no IV volume do “The Journal of the American Psycho-Analytic Association” em 1956. 

No seminário X, Lacan faz referência a esse artigo de Lucia Tower para avançar na formulação do campo do desejo e do objeto a. Ao longo de sua articulação faz elogios a Tower, fala de um frescor, de que ela entra em cheio no cerne da questão… e que é de uma coragem especial. 

Lacan evidencia que algumas mulheres analistas ensinam sobre o que mais adiante em seu ensino vai formular como a parte feminina do ser falante.

Citação dele:

(…) Retomo as coisas por nossa Lucia Tower, que me ocorreu tomar como exemplo, por uma vertente do que chamarei de facilidades da posição feminina quanto à relação com o desejo. O termo “facilidades” tem aqui um caráter ambíguo. Digamos que uma implicação ínfima nas dificuldades do desejo permitiu-lhe raciocinar, na posição psicanalítica, senão de maneira mais sadia, ao menos mais livremente, em seu artigo.

Escolhemos apresentar o primeiro caso desse artigo de Tower. Não foi este o caso que Lacan privilegiou no seminário X, mas o escolhemos porque trazia o percurso e questões que avançamos no cartel.

No artigo, Lucia Tower se pergunta: Qual a relação do analista com seu inconsciente numa análise? 

Vamos segui-la… 

Este é o fragmento que Tower traz:

Começarei com um exemplo de uma reação contratransferencial com acting-out. Há muitos anos, uma paciente, após uma reação próxima da psicose, foi encaminhada a uma “análise” com alguém sem formação, e estava furiosa por sua frustação com esse terapeuta prévio. Semana após semana, mês após mês, ela se enfurecia comigo de um modo agressivo, apesar da grande paciência que tinha com ela. Suportei dela um abuso sem antecedentes com outros pacientes. Às vezes, esse abuso me irritava, mas na maioria das vezes gostava muito da paciente, e estava muito interessada em ajudá-la e de certa forma, fiquei surpresa com a minha habilidade de controlar minha irritação com ela. Finalmente, entendi que aquela atitude terapêutica desejável, representava uma complicação contratransferencial. O seguinte episódio chamou a minha atenção quanto a esse problema.

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Apresentação Seminário Clínico

Coordenação: Marcia Zucchi e Maria Silvia G. F. Hanna
Datas: 19.04; 21.06; 16.08; 18.10
Hora: 20h
Ugo Rondinone, Primitive, Glasgow, 2012.

É com alegria e entusiasmo que assumimos a coordenação do Seminário Clínico de 2021.

Propomos o tema do amor, em sua vertente transferencial, a partir do qual teceremos conexões com o desejo do analista, a interpretação e o manejo da transferência, interrogando o que há de novo nesse campo e como o analista responde na atualidade.

Para o primeiro semestre, escolhemos dois casos comentados por J. Lacan nos seminários 10 e 11. 

O caso de Lúcia Tower, presente no Seminário 10, possibilitará elaborar sobre a função do desejo do analista como instrumento na passagem do gozo ao desejo. 

O caso Unicórnio, de Serge Leclaire, encontrado no Seminário 11, traz outros aspectos importantes, dentre os quais destacamos a interpretação e o fora de sentido no contexto da formalização das operações de alienação e separação. 

Cada caso será lido e discutido previamente por um cartel que participará do seminário apresentando os pontos que foram se destacando.

O cartel que se dedicará ao Caso de Lucia Tower está constituído por: Ana Beatriz Freire, Ana Tereza de Faria Groisman, Maria Correa e Vania Gomes.

O cartel que se ocupará do caso do Sonho do Unicórnio, de Serge Leclaire, está constituído por: Ángela Bernardes, Dinah Kleve, Isabel Bogéa e Rachel Amin.

Contamos com a presença de todos aqueles que queiram nos acompanhar neste percurso.

Bibliografia:
Lacan, J. A mulher, mais verdadeira e mais real (capítulo XIV). In: Seminário, livro 10. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2005.
Lacan, J. Coisa de Macho (capítulo XV). In: Seminário, livro 10. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2005.
Lacan, J. Da interpretação à transferência. In: Seminário, livro 11. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed,1990.
Leclaire, S. O sonho do unicórnio. In: Psicanalisar. Rio de Janeiro: Perspectiva, 2019.
Tower, Lúcia E. Contratransferência. In: Acheronta 19. Pdf. www.acheronta.org/index.htm 

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