Por Melissa Bottrel
Cartel: Alguma coisa da ordem da poesia – Maria de Fátima Pinheiro (mais-Um), , Gisele Moreira, Mariana Pucci, Melissa Botrel, Olívia Viana.
há mundos submersos,
que só o silêncio
da poesia penetra
Conceição Evaristo
Começamos nosso cartel que mais tarde foi nomeado Alguma Coisa da Ordem da Poesia a partir do que Lacan diz no Seminário 24: “Que vocês sejam inspirados eventualmente por alguma coisa da ordem da poesia para intervir, é exatamente na direção do que vocês devem se voltar.” (LACAN, 1976-77, inédito, aula de 18 de abril de 1977).
Também no mesmo seminário Lacan afirma:
Se vocês são analistas, verão que é o forçamento por onde um psicanalista pode fazer soar outra coisa que o sentido. O sentido é o que ressoa com a ajuda do significante, mas o que ressoa, isso não vai longe, é mais frouxo. O sentido, este obstrui. No entanto, com a ajuda do que se chama escritura poética, vocês podem ter a dimensão do que poderia ser a interpretação analítica. (LACAN, 1977, n.p,)
Para poder fazer uso de alguma coisa da ordem da poesia em nossa escuta analítica é pertinente abrir uma conversa entre poesia e psicanálise, duas formas de lidar com a linguagem que subvertem os sentidos fechados das palavras, trazendo para perto a presença do real, do fora do sentido. Assim, entendi que meu percurso neste trabalho de cartel se daria a partir das perguntas: como a análise e a poesia encostam, como litoral, no indizível? E como a poesia nos ajuda a escutar?
No presente texto, seguirei acompanhada de trechos do poema de abertura de Ana Martins Marques (2021) em seu último livro, Risque Esta Palavra para começar a pensar sobre o indizível para a psicanálise, prática do dizer.
Risque Esta Palavra
mas nada disso era uma palavra
dessas que coloco agora uma após à outra
para que depois você as receba como um aviso
de que ainda não morri de todo
(MARQUES, 2021)
Como escreveu Valter Hugo Mãe no livro Contra Mim, “as palavras são instrumentos de partida.” Instrumentos de partida com os quais podemos enxergar os espaços em branco que existem entre elas. Para Lacan “a palavra não tem nunca um único sentido, o termo, um único emprego. Toda palavra tem sempre um mais- além” (1935-54, p. 314). Será que esse “nada disso era uma palavra” de Ana Martins Marques (2021), coloca justamente o que está para além desse aviso que é direcionado ao outro? Coloca de forma precisa, a partida que pode surgir a partir de uma palavra? Lacan postula a primazia do significante em relação ao significado e inclui o que está para além da palavra, o que está no dizer para além do que é dito. Ana Martins Marques continua:
e o que encontrei
um dia após o outro
não foi uma palavra
(embora em torno das coisas
sempre se ajuntem palavras
como cracas no casco
de uma embarcação antiga)
(MARQUES, 2021)
É com as palavras que o analista pode trabalhar. É com as cracas presas no casco. Mas, é também abrindo espaços para a presença do indizível que a palavra traz. Assim, alguma coisa da ordem da poesia pode ajudar o analista a sustentar sua escuta de palavras e não palavras, do real que a palavra traz consigo. Como quando se escreve um poema: ali se fala de algo, incluindo necessariamente o que não se diz disso, incluindo sentidos não fechados, partidas, espaços e silêncios. Como diz Badiou (2017) no livro Em Busca do Real Perdido: “Um poema extorque à língua um ponto real de impossível de dizer” (2017, p.40). Assim, seguindo nas palavras de Ana Martins Marques:
às vezes sim me ocorre encontrar uma palavra
apenas quando a encontro
ela se parece com um buraco
cheio de silêncio
(MARQUES, 2021)
Risco na Escuta
Quando o psicanalista Chacon pergunta “o que a orientação lacaniana incorpora de poesia em sua clínica?” (2021, n.p.), leio que é possível sustentar que a poesia pode sim ajudar o analista neste caminho de escuta e trabalho, que inclui tanto a presença das palavras, em um trabalho de descristalização dos sentidos, quanto o além dessas palavras. Então, questionar o que se incorpora de poesia na prática clínica, é considerar que a direção de escuta do analista se localiza nas palavras como pontos de partida, não de chegada. Assim, este nosso trabalho com o dizer, que parte da experiência do real que reverbera no corpo, nos coloca em compromisso com as aberturas que podem existir nas palavras, como em um poema.
e o que eu encontrei
um dia após o outro
não foi uma palavra
mas uma canoa em chamas
não foi uma palavra
mas um acidente doméstico
envolvendo um barco de brinquedo
e uma máquina de costura
não foi uma palavra
(CHACON, 2021)
Se Ana Martins Marques e Lacan pudessem trocar palavras, será que chegariam a conclusão de que é preciso riscá-las para que algo desse mais-além pudesse aparecer? Penso que não ousariam dizer, o risco do silêncio poderia dar o tom.
um poema não é mais
do que uma palavra que grita
risque por favor
esta palavra
(MARQUES, 2021)
Rio, 22 de março de 2022