Por José Ronaldo de Paulo
Cartel: Savoir y faire – Eliana Bentes (Mais-um), Maya Rodrigues, José Ronaldo, Lígia Amorim, Guilherme Lima, Ana Carolina
A partir da leitura do texto “A direção do tratamento e os princípios do seu poder”(1958/1998) os cartelizantes do cartel Sarvoir y Faire, foram provocados pela + 1 Eliana Bentes a realizarem uma vasta pesquisa contínua pelas referências colocadas por Lacan. Me detenho aqui a realizar uma ponte entre o jogo bridge e a análise.
No texto O início do tratamento (1913) Freud, traz à tona a metáfora do jogo de xadrez para ilustrar os impasses no tratamento analítico que vincula a tentativa de descrever e apreender algo como incerto encontrado no cenário de uma análise e no jogo – já que em ambos o decorrer do processo são diversos quanto imprevisíveis. Freud nos diz que apenas é possível representar as jogadas iniciais e finais no xadrez , colocando o meio como incerto e as limitações da representação do jogo poderíamos encontrar as regras que podem estabelecer para o exercício do tratamento psicanalítico (p.87). Lacan, em seu retorno à Freud, utiliza o jogo de cartas chamado bridge que não à toa, é conhecido como o xadrez das cartas. Jogo este, onde o diálogo entre os parceiros é fundamental para a vitória.
O bridge é um jogo de lógica onde duas duplas se enfrentam, possuindo 52 cartas disponíveis para 4 jogadores, onde cada um fica com 13 cartas se dividindo em:
- Declarante – o jogador do par que menciona o naipe de trunfo ou sem trunfo, do contrato final;
- Morto – o parceiro do declarante, competidor que não irá jogar durante a rodada.
- Flanco – a equipe adversária.
As etapas do jogo são conhecidas como Leilão e Carteio:
No Bridge o que está à venda no Leilão é a possibilidade de cartear. O Leilão vai dividir a mesa de Bridge em duas partes. Quem ganhar o leilão vai tentar fazer as vazas que prometeu. Quem perder o leilão vai atacar e tentar fazer com que o número prometido de vazas não aconteça para quem estiver carteando. (Clube de Bridge Belo Horizonte)
A articulação entre o bridge o Esquema L
A seguir, um esquema do que seria o bridge (jogado sempre em sentido horário), articulando com os elementos na análise:
O morto
Jogador 1 (o analisante) Jogador 2
à esquerda à direita
Declarante (o analista)
O analista assume a função de declarante pois é ele quem dirige o tratamento, seu parceiro será o morto que no bridge terá o seu jogo aberto. Com isso, é viável suscitarmos a figura do grafo L, citado pela primeira vez por Lacan no Seminário “A Carta Roubada” ([1949] 1966), no qual delineia a dialética imaginária seguida do estádio de espelho, inserido na metáfora do bridge, para a representação dos quatro jogadores:
Figura 1
S: sujeito
a’: o pequeno outro em posição de objeto;
A: o grande Outro e lugar dos significantes;
A partir do diagrama é possível estabelecer os quatro lugares no circuito da cadeia significativa:
– O ICS: o discurso do Outro, situado no eixo simbólico AS; lugar onde o sujeito poderá encontrar sua determinação significante.
– O eixo a -a’: corresponde ao eixo imaginário; compondo a relação de espelho entre o eu e o semelhante, o pequeno outro. Será através desse eixo onde a fantasia será estudada por Lacan (Brousse, 1989, p.80). Miller, comenta que o eixo [a-a’] se obtém uma esplêndida síntese de todo um material clínico, sem dúvida existente, mas que pertence , seja qual for a sua variada e extraordinária complexidade, à relação entre o indivíduo e suas imagens (MILLER, 1987, p.112).
Lacan, retoma o grafo L no texto “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose” (Lacan, 1957- 1958/1998), e coloca os elementos como:
S: sua existência inefável e estúpida;
a: seus objetos;
a’: seu ego, isto é, o que se reflete de sua forma em seus objetos;
R: O lugar de onde pode surgir a questão de sua existência.
Cadaverizando uma posição
O analista, conforme nos designa Lacan, joga com os sentimentos do morto:
Mas o que há de certo e que os sentimentos do analista só tem urn lugar possível nesse jogo: o do morto. e que, ao ressuscita-Io, o jogo prossegue sem que se saiba quem o conduz. (p.595)
Jogar com o morto significa do analista cadaverizar a sua posição, seja por seu silêncio, ali onde ele é Outro, Autre com A maiúsculo, seja anulando sua própria resistência, ali onde é o outro, autre com a minúsculo. Em ambos os casos e sob as respectivas incidências do simbólico e do imaginário, ele presentifica a morte (p. 431)
Tomo aqui, o caso Dora e “A Jovem Homossexual” investigados por Lacan no Seminário IV – A relação do Objeto, para se ter noção sobre os lugares não fixos do analista e da sua estratégia, subsequente a maneira pela qual o sujeito se coloca na transferência. Temos conhecimento dos acting-out quando Dora esbofeteia o Sr. K e a Jovem Homossexual se joga numa linha ferroviária a vista do pai que encontrou a filha em companhia da dama. Lacan nos diz que no primeiro caso, Dora se sentiu enganada por Freud por este subestimar a função da senhora K, respondendo de alguma maneira “o que é uma mulher” e no segundo caso, Freud se sentiu enganado pela Jovem Homossexual. Portanto, entende-se que enganar ou ser enganado diz sobre a posição do analista em virtude da sua dimensão simbólica (A), na medida em que ele esteja à direita ou à esquerda do analisante conforme Lacan nos ilustra com a metáfora do bridge. Dito de outra maneira, se ele joga antes ou depois do quarto jogador (parceiro do analisante) e antes ou depois do morto. Freud é engando pela “Jovem Homossexual”, quando lhe escapa que o acting-out da analisante visava sua imagem, aquilo que ela imaginava ser o desejo de Freud: casar e ter filhos. Com estes dois casos, localizamos o lugar do Eu do analista, que consiste no desdobramento da sua imagem na transferência. Ao tentar reanimar este lugar, correrá o risco do jogo se romper ou de não saber quem conduz o tratamento.
Por este motivo que o lugar do analista indica para um impossível numa posição de abnegação e suspensão de saber. O lugar do morto, que assim ele ocupa, não denega as chances de se fazer semblante de a. Portanto, valendo-se da ideia de que não existe um objeto que venha satisfazer plenamente o sujeito, este que será guiado por um desejo que tenha em seu alcance um objeto Real, para sempre perdido.
Dessa forma, pergunto: o que é um analista? Ou que é preciso prescindir para surgir um analista? Na análise há um saber que “é perdendo que se ganha”, para o sujeito analista: é morrendo que se vive?
A partir de uma sutil pergunta da Márcia Zucchi no dia 14 de Maio de 2022, sobre o que move o desejo do analista na atualidade, me fez pensar que além da sustentação ética do bem dizer, podemos encontrar nas fronteiras do indizível de uma análise o desejo singular de cada falasser sobre o saber-fazer a partir do vazio, mas como nos indica Lacan “não sem alguns outros”.