Psicanálise e política – Seminário da Diretoria da EBP-Rio – Primeiro Encontro

Segundas às 20hs (21/3, 18/4, 30/5 e 20/6)

coord: Renata Mendonça e Marcus André Vieira
Vídeo:
https://drive.google.com/file/d/1GwMOkFFOpmVvaouz_DuD8diXiOwJxzZy/view?usp=sharing

Áudio:
https://drive.google.com/file/d/1-mupS_SUWrkSMiWC7RBn7Am0WeUEo9DC/view?usp=sharing

A seguir notas dos coordenadores e trechos selecionados do encontro

O imaginário dos corpos falantes

(primeiro encontro)

Marcus André: Bem-vindos, Recebi o convite para coordenar este seminário da EBP-Rio com alegria, mais que necessária nesse momento uma reflexão sobre as relações entre psicanálise e política. Minha decisão principal foi a de convidar alguém “de fora” da Seção, Renata Mendonça. Ela é psicanalista em Belo Horizonte, pesquisadora do coletivo Ocupação PSILACS-de UFMG e uma das responsáveis pelo Ateliê Psicanálise e Segregação da EBP seção Minas. Como se vê ela não é tão de fora assim. Fora do Rio, sim, mas não do nosso campo. Poderíamos dizer que ela é “êxtima”, mas esse termo vem fácil demais em nosso campo e é preciso sempre lembrar que a extimidade é uma prática e não uma posição fixa. Então, prefiro dizer de outro jeito. É muito bom que possamos ter uma discussão pautada por referências que nem sempre frequentamos na nossa comunidade, a da EBP/AMP, referências mais diretamente implicadas no tema da segregação. Aliás, segregação me parece suave demais para situar a desigualdade tão violenta de nosso país, por isso a referência à escravidão e ao racismo é essencial. Não dá para pensar em política em nossas terras de outro modo. Vamos lá?

Questões prévias ao que seria uma (ação) política da psicanálise

Em vez de tomar política e psicanálise como dadas e interrogar qual seria a melhor articulação entre elas, vamos perguntar: Qual política seria afim com o inconsciente?

Sim, porque de saída percebemos a dificuldade: a vida política, se entendida como vida dos cidadãos conscientes e votantes tende a estar em oposição à premissa do inconsciente. Dito de outro modo: o voto ignora o sujeito dividido. Precisamos de uma concepção de política bem mais vasta do que essa.

Então, a quem esperava que tomássemos a política representativa, ou a vida partidária, ou ainda lutas específicas como eixo, pedimos desculpas. Isso não significa que não devamos lutar contra o que ocorre, hoje, em nossos país, mas apenas que será preciso também, para que nossa ação seja mais efetivamente própria, perguntar: de que psicanálise estamos falando quando falamos em psicanálise e política?

Quanto a essa questão, já temos um bom desenho de resposta graças ao imenso trabalho de nossa comunidade. Eu diria: a psicanálise, da qual propomos uma política é aquela que assume que “O inconsciente é a política”. Nas consequências desse aforismo de Lacan, situa-se todo o trabalho de nossa comunidade no plano da política da psicanálise, por um lado, e de nosso lugar na política mais geral, da cidade, de outro.

Resumo muito grosseiramente uma das maneiras de entender essa fórmula: assumiremos que o espaço de vida e de circulação dos corpos em que nos inserimos, e que chamaremos a cidade, é estruturada como o aparato freudiano do ser. Quer o chamemos, dependendo da tradução, anímico ou psíquico, ele é corporal e articula uma memória ilimitada, o cristal da língua, com o gozo que a ele escapa. Dito ainda de outra forma, agora de maneira mais lacaniana, a cidade será para nós um espaço estruturado de modo análogo às relações entre o Outro e o inconsciente, ao modo da também célebre fórmula de Lacan “O inconsciente é o discurso do Outro”.

Como texto de base nesse sentido, propomos o excelente compilado de um grande número de referências, especialmente as de J. A. Miller ao tema “política lacaniana”, produzido por Anamáris Pinto a partir de um trabalho de cartel e que faremos circular, assim como todo o desenvolvimento de MH Brousse em suas conferências em São Paulo em torno do aforismo lacaniano “o inconsciente é a política” e que foi recentemente republicado pela EBP-SP juntamente com uma conferência recente.

  • importante mantar a questão em aberto da possibilidade de uma democracia não apenas definida pela noção de representatividade e do voto (por exemplo, a noção de democracia radical de Mouffe e Laclau). Afinal, tanto Hitler quanto outro foram eleitos em um sistema democrático (em um sentido mais restrito, claro). Destaca-se, também, como o enlace entre a promoção dos direitos humanos, da república (com a distinção entre os três poderes que a estruturam) e do estado constitucional de direito (tal como se desenvolveu especialmente após a segunda guerra) segue sendo a forma de democracia que se apresenta como mais favorável ao exercício de uma análise dadas a pluralidade e a liberdade de fala que a.

Destaco ainda a vinculação orgânica estabelecida por Lacan entre clínica, política e saber, em “A direção do tratamento”. É quando propõe a tripartição tática, estratégica e política – entre o trabalho na sessão, o da interpretação; o trabalho do tratamento (como uma sequência de sessões), na transferência, e o trabalho do analista em seu objetivo maior de incidir sobre a cidade, de seu desejo e do fazer com o sinthoma. Vamos subdividir nossos encontros seguindo essa tripartição. Resumo novamente de maneira grosseira esse nosso fundamento e remeto vocês ao trabalho de um curso no ano passado sobre o tema (https://bit.ly/taticaestrategiaepolitica).

Dado esse solo comum, vamos apenas acrescentar duas hipóteses que, esperamos, nos levarão a à investigação específica desse seminário.

  1. A ideia de que, apesar da interpretação lacaniana ser essencialmente corte, hoje, é preciso além de “cortar”, não perder de vista de que modo se dá a costura, o laço, a partir da interpretação. Sabemos que o caminho analítico freudiano passa pela desindentificação, mas nada se sustenta sem novas identificações que ganhem em parte o lugar daquilo de que nos separamos. Assim entendemos o que Lacan chama de “identificar-se com seu sinthoma”, no Seminário 23.
  1. A ideia que é preciso, para que a identificação em questão não seja a da tribalização geral, em curso em nossos tempos de ocaso do pai, que ela seja apoiada na noção, mesmo que vaga, do corpo falante, a ser contraposto ao corpo do espelho. Em vez de fundada na política nos egos, nossa política, a da cidade do inconsciente, se encarna no falante dos corpos. Aqui a referência é todo o trabalho do congresso da AMP de 2016 sob esse título (http://www.congressoamp2016.com/index_lang.php?url=/)

Vejam que em ambas as hipóteses, estamos em cheio na dimensão do imaginário, um dos três registros fundamentais com os quais Lacan destrincha a experiência analítica. É toda nossa ideia, a de acompanhar a reabilitação do imaginário empreendida por Lacan em seu último ensino, mas a partir de sua relação com o real e o simbólico, nos termos do seminário 23, a relação do que nos dá consistência corporal, não pode ser separada do que nos dá seus furos essenciais assim como a presença de um real que ao corpo ex-siste.

Então propusemos esse desdobramento em 4 encontros, como segue. Para o primeiro, esse de hoje, dois fragmentos clínicos para nossa discussão. O do Passe de Marina Recalde, em que vemos como é possível separar-se de um destino de trabalho infernal associado à cor da pele pela interpretação, assim como um fragmento de Renata em que a cor da pele torna-se uma possibilidade de interpretação.

Psicanálise e política – Seminário da Diretoria da EBP-Rio

segundas às 20hs (21/3, 18/4, 30/5 e 20/6)

coord: Renata Mendonça e Marcus André Vieira

  1. Identificar-se com seu sinthoma

Uma análise trabalha por redução. Nossos dramas vão se decantando em cenas primordiais, articulando as fixações matrizes do nos foi constituindo ao longo da vida.

A conclusão da análise passa por uma desrealização dessa matriz, a fantasia, uma vez que essa redução permite-nos entrar em contato com o que dá vida não é capturado por ela e segue nos excedendo indefinidamente. Tendemos a destacar como poder “fazer com” esse gozo sem rima nem razão, gozo do sinthoma, tal como a ele se refere Lacan, abre-nos a uma maior possibilidade de viver cada encontro em sua contingência e surpresa, mas não há contingência sem alguma regularidade, não há laço sem coesão. Não há laço sem Outro, mesmo que relativamente inconsistente. Neste sentido, “Identificar-se com seu sinthoma”, essa indicação de Lacan nos impede de tomar uma análise apenas no registro da desidentificação. Afinal, o que seria uma vida que prescindisse do imaginário, das particularidades? No mínimo insossa. É preciso identificar-se, mas nesse caso, será bem mais identificar-se de outra maneira, com o seu sinthoma, indo ao encontro de uma identificação singular que implica os laços e faz laço, em um novo momento em que o sujeito lida com seu corpo, com o seu sinthoma, sem tentar escapar de seus furos, mas, se havendo com eles de um modo único.

  1. O inconsciente é o discurso do Outro

A psicanálise não se encontra na cidade da mesma maneira, não se encontra com as mesmas queixas, nem com os mesmos corpos. Como não ver que a cidade mudou? No Outro de nossos tempos, o patriarcado tem não tem mais o mesmo valor de referência universal. Explodem as tribos e as particularidades do tribalismo contemporâneo. Como o inconsciente não é estático, como ler seu lugar e função nessa essa nova configuração da relação entre o Outro, o imaginário dos corpos e o real? Os três registros lacanianos têm função distinta, mas sem hierarquia alguma entre si. Como, então, ler a explosão de novas identidades, particularizadas ao infinito, sem banalizar ou reduzir a função do imaginário? Reconhecemos que se a cidade mudou, se o horizonte da época, nosso Outro mudou, então é preciso delimitar a que ponto a apresentação do inconsciente e configuração dos corpos mudou. O que a psicanálise pode fazer? O essencial, para nós é partir do pressuposto de que apesar de estarmos em um contexto talvez mais refratário à suposição de saber isso não significa que há necessariamente rechaço do inconsciente, mas apenas que precisamos descobrir como trabalhar com ele em um novo horizonte.

  1. Nossos guias

Pretendemos partir dos guias existentes, passes e fragmentos de casos para sustentar essa investigação a que nos propomos, sobre o Imaginário e o Inconsciente hoje.

O caso clínico, o inconsciente dos sujeitos, no um a um da clínica, sempre orientaram o tratamento, sempre ensinaram aos psicanalistas. Como nos deixar ensinar na atualidade? Como ler os corpos que construíram seu inconsciente a partir de marcas que foram e são rechaçadas pelo mestre? Além de acompanhar cada um até seu “fazer com”, trata-se, também, na cidade, de recolher as formas, os modos identitários de onde partem os analisantes hoje para se virarem com o gozo opaco de seu sintoma. Aqui, mulheres, migrantes, indígenas, negros, trans, são guias, pois raramente podem se dar ao luxo de se contentar com a suposição de saber em um mestre (afinal, o que esse mestre quer mais é lhes eliminar). Como esses corpos não podem contar com a suposição de saber em um mestre, de qual inconsciente estamos falando neste caso? Estes que viveram e vivem às voltas com seu sintoma opaco podem ser guias sobre o inconsciente. Podem nos ensinar, se nos deixarmos ensinar, sobre o modo como uma ancestralidade se inscreve apenas em marcas marginais, ao próprio corpo, inclusive, pois pouca coisa visível escapava da ordenação e das formas imaginarias impostas pelo mestre colonial. De fato, os sujeitos do assujeitamento radical do racismo ambiente, por exemplo, foram levados de alguma forma a ter um corpo outro, pois as os modos corporais de gozo coletivo comer, dormir, fazer amor, ter fé e ter filhos lhes era negado. Podem, eles, nos ensinar como o inconsciente, como discurso do Outro, atravessa os corpos para além da cidade branca?

  1. O corpo do mestre

Não ter opção a não ser compor com o opaco do corpo sem passar pelo saber do mestre é o que pode ocorrer igualmente com o analisante ao cabo de seu enfrentamento analítico com o destino. Podemos nos perguntar, também, como o corpo senhorial é atravessado pelo inconsciente. Será que este que quer eliminar o diferente sabe que não é um corpo? Como chegar o sinthomal, ao gozo do Um-sozinho sem responder sobre si, sobre o corpo que tem? O corpo mestre, neste momento, se dá conta que é só mais um corpo, como escutar o inconsciente a partir desta ferida narcísica?

Seja qual for o caso, quando só resta do desejo o gozo de desejar, a vida como fome fundamental que essa composição com o opaco do gozo pode fazer do corpo caixa de ressonância para o que da vida é mutante, quando pão e poesia ambos, tudo ao mesmo tempo agora, tornam-se a luta que vale.


Psicanálise e política – Seminário da Diretoria da EBP-Rio

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coord: Renata Mendonça e Marcus André Vieira

Des-cobrir um corpo

Renata Mendonça

Esse Seminário, a princípio, pretende a partir dos guias existentes, sejam eles os passes ou os fragmentos de casos, sustentar essa investigação que nos propomos sobre o Imaginário e o Inconsciente na contemporaneidade.

Já que a cidade mudou e, o inconsciente não é estático, já que ele está de acordo com nossa época; como ler o mesmo? Os três registros têm uma função distinta, mas, não são superiores entre si. Como, então, ler o Imaginário sem banaliza-lo, escutando o que é novo nesse registro? Queremos avançar neste ponto, tendo essa hipótese do Imaginário e do Inconsciente, mas sem ficarmos presos a um saber antecipado. Qual hipótese? Que com a mudança na cidade há um outro Imaginário e um outro Inconsciente a ser escutado.

Estamos avisados da ética da psicanálise e deste caminho de uma desindentificação, mas, não sem uma nova identificação, um percurso para uma identificação ao sinthoma, que sustenta os laços e os novos laços sociais com seu corpo próprio, com seus furos como nos ensinam os passes.

Assim, na tentativa de aprender e nos deixarmos ensinar, trago um fragmento de um jovem que chega ao consultório pela segunda vez. Quando chegou pela primeira vez foi trazido pela mãe que o considerava ansioso diante dos estudos para o Enem, ele estava almejando uma vaga em um curso muito concorrido. No segundo momento ele vem por conta e risco, angustiado, pois, ao entrar no curso desejado, se depara com um grupo de colegas que não quer trabalhar com ele. Angustiado e sem entender o que se passa, pois, se considera um “cara bacana”, estudioso, que sabe lidar com as questões e é ponderado.

A analista, depois de tentar escutar algo que ele pudesse dizer sobre esses colegas que o colocasse a trabalho, tenta esvaziar o grupo, dando lugar a um trabalho sozinho em que ser gente boa e bacana não precisava ter essa exigência de fazer parte ou ser aceito.

Ele, depois de um tempo, diz “não preciso ser tão gente boa” cuidar dos amigos, ajudar no trabalho e etc. Se separando da ideia de entrar nesse grupo que “não queria trabalhar com ele”. A partir deste momento começa a dizer dos estudos em sua vida. E de um sintoma “não esquecer nada”, os livros na estante e sua ordem, os números de telefone e etc.

Sobre os estudos: sempre gostou de estudar e o quarto era o melhor local, o lugar de ficar tranquilo e, afirma que não gosta de brigas e nem discussões, que era um jeito de ficar longe disso quando as discussões aconteciam em casa. A mãe muito deprimida, o pai com pouco pulso ficar estudando no quarto era um bom esconderijo.

Ao se deparar com esse “ estudar como esconderijo” para se manter tranquilo, algo acontece e ele começa a esquecer ao invés de guardar as coisas: esquece as chaves, os horários, os telefones e a ordem dos livros deixa de ser interessante. A analista: “Para quem não podia esquecer nada, o que isso controlava? ” Começa a se perguntar sobre esses lugares de controle, do ponderado, do estudioso e daquele que pode saber dos objetos, afirmando: “por mais que seja bom estudar não posso mais me esconder nisso”.

Em um final de semana ele saí com outros amigos, eles vão para um bar, vê pretos neste bar, sente-se acolhido, conversa com eles e, na sessão de analise diz: “agora sei que sou preto”. Nesse recorte, a partir do encontro com os semelhantes, podemos afirmar a importância do imaginário para o ser falante, pois, este ao se deparar com uma imagem especular forma ou antecipa a sua própria imagem. Neste caso quando ele entra no bar e é acolhido, ele se identifica, a partir do encontro com os pretos ele se nomeia: “Sou preto”.

A partir desta nomeação esse jovem apercebe-se, se dá conta, dos vários episódios racistas que viveu durante a sua vida desde a infância. Episódios que não eram lidos como racistas, mesmo que alguém o avisasse da violência sofrida. Um obsessivo sem cor ganha corpo (negro) como leu Marcus André Vieira.

Esse fragmento nos interessa porque nos ensina que estamos mergulhados em um racismo estrutural, mergulhados em um discurso, tal qual Freud mergulhado na era vitoriana, e que aqueles que estão assujeitados neste racismo estrutural, mergulhados neste discurso muitas vezes não reconhecem o corpo que tem ou não sabem como lidar com ele, tentando um modo “ponderado” de ser, tentando se manter de acordo com o modo do mestre branco. Com isso ele faz amor, tem fé ou se dirige ao outro de um modo que não implica seu corpo, mas, o corpo do outro.

Esses sujeitos precisaram fazer uso do corpo do mestre para existirem e, muitas vezes, repelir o próprio corpo. Onde o Ideal do Eu não inclui os corpos pretos, o corpo trans… Pois o ideal é hetero, cisgênero, cristão, em que esse gozo é o orientador dos corpos. A necessidade do Deus único que possa normatizar o gozo. São estes sujeitos que são os guias deste Seminário.

Podemos afirmar, a partir da psicanálise, que esse uso do corpo do mestre branco e cis, por exemplo, não é e não foi uma boa solução, pois, como o inconsciente resiste e insiste, saber-se em outra situação, em outra posição diferente da do mestre, fez com que estes tivessem estratégias e sintomas que causaram um não lugar, um não pertencimento pra além do grupo, um não pertencimento ao próprio corpo. Uma posição melancólica diante da vida, (Neuza Santos Souza “Tornar-se Negro”), uma mudança de corpo a partir da ascensão social. Uma identificação com o corpo do mestre perdendo sua própria história e marcas, insígnias mais próximas de seus corpos.

Já que o inconsciente insiste e resiste a única resposta dada a esses sujeitos, até o momento, era de uma eliminação seja literal ou perda de seus lugares como sujeitos desejantes. Podemos afirmar que avançar nesta questão está de acordo com a ética da psicanálise, uma ética que supõe a existência dos vários corpos e modos de gozo e que tem como objetivo não a normatização dos corpos, mas, uma apropriação, ter um corpo fazendo bom uso deste sem o rechaço ou a eliminação disto que pode estar presente em nossa época, pois, a política da psicanálise é a política do inconsciente.


Psicanálise e política – Seminário da Diretoria da EBP-Rio

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coord: Renata Mendonça e Marcus André Vieira

Novo uso do sinthoma

Marina Recalde

Testemunho apresentado na EBP-Rio

(O primeiro testemunho pode ser lido em Lacaniana 16, Buenos Aires, Grama, 2014)

A insônia infantil me levou ao encontro de um analista em meus primeiros anos de vida. Análise que durou um tempo breve, do qual tenho só alguma imagem difusa, mas que foi suficiente para o apaziguamento do sintoma. Anos depois, o retorno da insônia, aterrador e angustiante, potencializado pela morte de meu pai, voltaria a levar-me novamente à análise, em plena adolescência.

Análise que se interrompeu ao cabo de uns anos, da qual, contudo, pude extrair um saldo terapêutico importante, o que inclui o apaziguamento do laço com o Outro materno, que era atormentador, e o esclarecimento de algumas coordenadas de minha neurose, que permitiu calar alguns sintomas conversivos profundamente vitorianos que haviam tomado o corpo. Por outro lado, foi possível resgatar o sentido do humor proveniente do lado materno, que foi e é fundamental para minha vida e, também, para minha posição de analista.

Depois, um impasse na relação com o homem amado e o retorno da angústia devastadora que me tomava o corpo, uma alergia na pele e um sintoma de tremor incontrolável em determinadas situações, me levaram a eleger um analista, com o qual transitaria um caminho analítico por mais de vinte anos.

Análise que, como disse em outros testemunhos, se desenvolveu em três períodos e que me levou duas vezes a apresentar-me no dispositivo do passe, a última das quais concluiu com uma nomeação. Hoje gostaria de referir-me ao que se sucedeu nas entrevistas com a primeira das passadoras ao apresentar-me pela primeira vez, o que me permitiu articular algumas novas voltas, que entraram de cheio no terceiro período da análise, e também os efeitos que se produzem no trajeto do trabalho que implica, a cada vez, passar um testemunho, isto é, cada vez, fazer o passe.

Por um lado, uma pergunta, inesperada: “e agora, como você se nomearia? Encontrei-me balbuciando, sem pensar muito: “decidida”. Nome que irrompeu surpreendentemente para mim, mas cujas consequências seriam logo formalizadas no terceiro período, e que me permitiram circunscrever assim um novo funcionamento.

Por outro lado, um sonho na noite anterior ao encontro com a passadora que me despertou com uma cantiga de ninar transmitida familiarmente pela via materna. Cantiga que havia me esquecido completamente e sobre a qual testemunhei em Paris e sei que estiveram trabalhando aquí, há poucos dias atrás.

Isto me permite situar um marco para poder pensar o sinthoma, seu uso.

O sinthoma, eu entendo como um novo modo de funcionamento, não fora dos ecos que permitem avançar, cada vez, na demonstração do impossível de nomear, gozo que escapa ao significante, mas que ainda assim permite inscrever algo que, sabemos, apesar de não chegar a nomear o inominável, o toca, o roça, o sopra…

Assim, causada por este trabalho incessante, hoje vou privilegiar os eixos fundamentais do que foi minha análise e meu passe, neste passar contínuo que se iniciou faz algum tempo.

Retomarei, brevemente, algumas questões, recentemente, apresentadas em Paris. Farei isso para poder marcar o comentário que Jacques-Alain Miller fez nesta ocasião, e que produziu em mim um impacto enorme.

1) O sintoma

A insônia havia me levado a uma análise infantil que transcorreu – dizem – em silêncio. Contudo, a analista pode captar um dizer neste sem palavras com o qual me apresentava, e o sintoma cessou em pouco tempo.

Anos depois, na puberdade, o sintoma retornaria de um modo feroz, desencadeado pelo desaparecimento violento de familiares e amigos, em plena ditadura.

Um recurso infantil que usava antes, já não era eficaz. Na infância, ao tentar conciliar o sono, uma tela branca vinha em mina cabeça, tela que ia enchendo-se de carrapatos negros, provocando-me uma inquietude angustiante e um tremor que ia aumentando. Só cessava de tremer quando essa tela, agora plena de coisas pretas, tornava-se novamente branca. Levou muitos anos, e um longo percurso analítico, para me dar conta da lógica fantasmática que animava este recurso: fazer que o negro se tornasse branco. Só assim conseguia dormir.

A relação com o Outro materno, era atormentadora. Assim, era sempre posta à prova, exigida mais e mais, em um ponto inalcançável que me deixava exausta.

O tremor tinha se tornado a resposta frente a situações de angústia, e sem piedade me sacudia, invadindo tudo e fazendo existir o gozo no corpo.

Pouco a pouco, o sintoma foi marcando o ritmo do laço com o Outro, e também tornando minhas noites, eternas e aterradas, em noites de insônia.

Com a adolescência e os primeiros encontros com o outro sexo, um novo sintoma se agregava ao tremor e também me tomava o corpo: uma alergia na pele, que se tornava ingovernável.

2) A Fantasia

A história de contrastes já iniciada por meus avós, e que ao longo da minha vida tomará diversas formas, tomou corpo em um casamento entre uma mulher branca, de classe média (minha mãe) e um homem de pele escura, proveniente de uma classe pobre (meu pai). Por razões diversas, os excessos de meu pai haviam-no localizado em um lugar de desprezo, lugar de dejeto negro. De toda maneira, o amor entre eles adveio e com ele, vieram os filhos.

O tom negro de minha pele, escura como a de meu pai, sempre foi um motivo de angústia e desprezo, não só em minha relação com o Outro como – e fundamentalmente

– para mim mesma, Era eu mesma, soube depois e já em análise, que havia me tornado portadora desse desprezo, imersa em situações que me devastavam, em um anseio desesperado para branquear-me.

Havia me localizado como uma “negra de merda”, ligando um significante (“negra”) à injúria frequente que vinha do Outro.

O analista interpreta, remetendo-me ao amoroso apodo paterno: “Negro não era o apelido de seu pai? Não o chamavam de Negro? Estava pasma. Havia aparecido outra vertente do negra que não havia notado. O S1 que havia comandado minha vida, mostrava assim suas duas faces: a face ligada à injúria, e a outra face, nova mas desde sempre ai, ligada ao amor ao pai.

Sobressalto-me. Meu apelido infantil e adolescente tinha sido, precisamente, “a Negra”. Ainda hoje, meus amigos da época, que ainda mantenho, me chamam assim. Jamais havia levado isso em conta.

Foi uma descoberta notável: um S1, negra, que não tem mais um significado unívoco. Havia aparecido a vertente amável desse nome, não mais ligado à injúria mas ao amor ao pai, desarticulando o que havia se constituído como frase fantasmática. Com uma injeção gozosa que eu mesma havia fabricado sem sabê-lo, havia mantido o “negra” de modo injurioso.

Será também na terceiro período analítico, que este “negra”, significante a partir do qual havia se tornado legível o programa de gozo na experiência analítica, será enlaçado em uma nova volta, não mais à injúria nem o amor ao pai, mas “decidida” que havia irrompido naquela entrevista com a passadora.

Um lapso, que me provocou risos, permitiu traduzir minha posição de submissão ao Outro: em vez de pedir a um motorista de taxi que me esperasse, lhe disse: “por favor, espero que me peça”, o que marcava claramente a posição ativa com que a pulsão traçava seu trajeto, dando vida a um Outro à medida de um gozo até aqui ignorado.

Um Outro frente ao qual me colocava a sua mercê, disposta a tudo, para acalmá-lo e preenchê-lo, cuidando para que nada da fantasia se deixasse entrever e assim tentar garantir seu amor. Era eu que havia me feito olhar assim, produzindo esse sintagma que iria ordenar fantasmaticamente minha vida e nutrir o sintoma ligado ao dizer sempre sim e ao que tomava meu corpo, especialmente, as erupções na pele.

O objeto olhar, depois de todas essas voltas, deixa de ter essa consistência e cai. Meu inconsciente estava “seco”. Não havia mais associações, nenhuma razão para continuar. A análise finaliza. O analista se despede: “resta enviar a carta…”.

Apresento-me ao passe. A resposta do cartel é não. Fico desconcertada e angustiada e com raiva, perturbação que levou algum tempo para sumir: não havia sido nomeada e o Secretariado me transmitia o que li como uma demanda de algo mais. Era um algo mais que me levou de volta à análise e teve um efeito interpretativo. Um algo mais que, em função do último período, me permitiu inscrever de boa maneira o que poderia ter se inscrito como uma demanda louca e caprichosa que tinha sido tão familiar. A resposta do cartel marcava que nessa oportunidade não tinha podido concluir com uma nomeação e considerava desejável um trabalho maior de formalização.

A resposta negativa, foi um “não” que me surpreendeu e que exigiu uma nova resposta, não mais ligada à devastação por um Outro cruel que sempre diz não, que pede mais, e que angustia, senão que desta vez colocava à prova se o obtido se verificava no percurso analítico sustentado por quase vinte anos. Se algo dessa “negra”, agora decidida, ressoava em mim, com um novo uso, permitindo-me dizer “sim” ou “não” frente a uma demanda do Outro, então, tinha que voltar à análise para poder localizar esse “não” e poder concluir. Ir ou não, novamente, ao passe.

Hoje posso afirmar que esta formalização, marcada pela primeira resposta, foi necessária, porque implicou em dar um passo a mais para produzir a separação final. Da minha hystória e do analista. Voltar a me apresentar no passe, dar esse passo suplementar, se decidiu sob as coordenadas que implicam dizer, “sim” ou “não”, sem o Outro e foi sancionado com uma nomeação.

“Negra decidida” que agora me situa podendo dizer não, mas também dizer sim, de outra maneira.

Ai onde, irremediavelmente, havia dito sim, para tentar acalmar e preencher o Outro, esperando que Ele me peça, tal como a fantasia havia alentado, para evitar a suposta crueldade ou raiva do Outro, adivinho outra tonalidade libidizando de outra maneira o “negra” anteriormente ligado à injúria, e voltando a eleger o parceiro amado, que soube acompanhar e alentar estes movimentos.

3) Acalantos que batem no corpo

Às vezes acontece se escutar e repetir, até a saturação, frases e canções infantis, sem saber o que dizem. Os sem sentidos infantis foram múltiplos (cada um terá os seus) transmitidos por gerações, que às vezes se repetem como um eco, frases que depois terão, no melhor dos casos, um sentido que dará um novo significado a essa música que bate nos corpos, acompanhando a infância.

Assim aconteceu, em meu caso, com a canção do gato e do ratinho, cantiga de ninar transmitida de uma geração à outra pela via materna:

A cantiga é a seguinte:

“Era um ratinho pequenininho, pequenininho que chegava ao morro por um buraquinho.

Era um gato grande fazendo ron ron, muito aconchegado sobre uma almofada.

Saiu o ratinho, subia na almofada, tinha o pobrezinho, medo de sua sombra.

Quando, de repente, escutou um grande estrondo.

Viu os olhos grandes de um tremendo gato.

E sentiu uma patada sobre seu rabinho, e saiu tremendo todo assustadinho.

E aqui acaba o conto do meu ratinho, que chegava ao morro pelo buraquinho…

Como podem ver, é uma cantiga que não tem fim, recomeça sempre e que, inevitavelmente, situa um ratinho trêmulo sendo encurralado por um tremendo gato de olhar cruel, em um circuito infinito.

Cantiga que ficou no esquecimento, como um lalala sem sentido que, contudo, havia sido escutado inúmeras vezes, até que foi recuperada na primeira vez que me apresentei ao passe.

Esta canção nunca havia entrado na análise e sua irrupção surpreendente naquelas entrevistas com os passadores, colocou-a em cheio no último período analítico.

Isso nunca havia entrado na análise e, contudo, representava muito bem o circuito pulsional que ali se desdobrava: esse ratinho me representava alerta e trêmulo, tratando de evitar que o Outro fizesse comigo a seu capricho.

Ratinho negro e aterrorizado, que formou parte de meu estofo gozoso onde havia estruturado minha neurose infantil.

Finalmente entrou na análise alguns desses significantes primeiros, que haviam me acalentado, o que me permitiu reduzir, até onde pude, esse núcleo real, encontro contingente com lalíngua e seus efeitos de gozo no corpo, “puro choque pulsional” sobre o qual se erigiu a fantasia, transformando o contingente em necessário.

Real sem sentido que havia irrompido no passe e que evidenciava o que estava fora do sentido na borda das ficções. Ali, justo onde haviam se nutrido o sintoma e a fantasia, evidenciando a lógica em que ambos haviam se constituído, fundidos nesse real do qual haviam se nutrido.

Neste ponto quero retomar o comentário de JAM a propósito do testemunho apresentado por mim no último Congresso. Ali – entre outras questões – marcou, por um lado, a dimensão do ratinho como uma contra identificação. Por outro lado, localizou a outra face do Outro materno, a vitalidade que permitiu situar uma identificação a esse traço (cujo avesso está nesta contra identificação), identificação primeira do lado do vital.

Isto me levou a perguntar-me pelas consequências de introduzir a vitalidade, ali onde o tremor havia ficado ligado ao ratinho alerta e aterrorizado, e repensar assim um novo modo de funcionamento articulado ao “decidida” que havia me nomeado, mas agora com uma nova volta, nomeando aquele acontecimento de corpo que havia me atravessado de maneira ainda mais radical.

Vitalidade que tomará diversas e decididas maneiras, matizadas por um humor que me permitiu suavizar o peso superegóico da neurose. Vitalidade que me permite hoje colocá-la a serviço de uma vida causada por uma força viva, e não mais a serviço do uso que a fantasia havia ditado. Vitalidade agora articulada ao uso sinthomático que me permite enlaçar de outro modo a pulsão, uma vez desligada da fantasia que havia me atormentado.

Aquela vitalidade havia me constituído, como um golpe de vida, vivificado um corpo, possibilitando a saída da devastação materna, realçando as duas faces: o tremor aterrorizado que aquele ratinho representava muito bem e o tremor que agita o corpo, signo de vitalidade que também tinha vindo do Outro materno.

Laço sinthomático que me permite interrogar se ele estava ali desde sempre: É algo que se inventa? Algo que se descobre? Ou este novo uso impede de dizer que o que estava ali, desde sempre, é o que está agora?

Vitalidade que havia sido anterior à análise, sem dúvida. Contudo, ter podido levar um percurso analítico até o final, desalojando as coordenadas fantasmáticas e sintomáticas, que ali também se embebiam, me permitiram dar um novo uso a este nome, presente ali desde sempre, agitando o corpo.

O novo deste uso permite também dar um novo estatuto ao tremor, não mais de angústia como a neurose mandava, senão como signo de um corpo vivo, que resiste à mortificação do significante e que insiste, a cada vez, podendo dar um novo destino à pulsão que não cessa.

Porque é uma leitura, uma análise transcorre perfurando e fazendo cair os significantes que, vindos do Outro, produziam mortificação. E o que surge no final é um significante que não se inscreve mais na cadeia que se enlaça neuroticamente ao Outro.

Penso que não importa se o nome é novo ou não. O novo é o uso.

Como nos indica J-A. Miller: “ou a revelação ou o sinthoma”. Ponto singular, inominável, ponto de invenção onde o parlêtre conseguiu enlaçar-se de outro modo ao Outro, pela via deste novo fazer.

Então? É um significante novo? É um uso novo e como tal é um significante novo, ainda que esteja formado pelas mesmas letras que aquele S1, enlaçado à neurose que o atravessamento fantasmático permitiu separar? E se é assim? Este significante é o que permite um novo modo de laço com o Outro, uma invenção singular que não é o Nome do Pai, agora desligado do padecimento?

O sinthoma entendido assim, dá um nome próprio ao sujeito, dá um nome ao que não cessa de não se escrever, um nome singular, que não forma classe, que não faz conjunto mas faz série, e que permite que o significante não mortifique o corpo mas que o vivifique, enlaçando-o novamente ao Outro. Penso que trata-se sempre de um nome novo, dado pelo uso, sem dúvida, um lugar novo também.

Em meu próprio caso, ter sido surpreendida nas entrevistas com a primeira passadora pelo significante “decidida” e o fato de colocá-lo na análise, me permitiu, por um lado, retomar e evocar uma interpretação – inesquecível – feita no começo da análise. E, por outro lado, um novo uso daquele “decidida” que agora nomeava outra borda e, que – em uma nova volta – pode enlaçar-se a essa vitalidade radical.

Não se trata de dar um nome, porque sim. É um nome que, sabemos, não chega a nomear o inominável, mas em meu caso, posto a trabalho, veio evidenciar que o circuito pulsional se armou e que agora podia dizer sim ou não.

O dizer sempre sim, se sustentava no esforço de fazer existir a relação sexual, capturada também na borda que implica dizer sempre sim, frente ao não (neste caso cruel) do Outro. Definitivamente, é um modo que continua enredado no sim e no não, na lógica da diferença. Encontrar-se neste lugar, novo, está para além de dizer sim ou não.

É um dizer sim ou não sem o Outro.

Sustentada neste “há sinthoma” e não no “há relação”, que tentava fazer existir, era uma zona que implicava um outro dizer e um outro modo de dar, não mais articulado ao dar o que se tem. Zona que, nas últimas Jornadas da EOL, Éric Laurent denominou, a propósito de meu testemunho, de indecidível. Isto é, para além do Outro.

Zona onde se inventa a partir de uma enunciação, e que não se articula mais à demanda insaciável do Outro. Zona que, definitivamente, a cada vez, bordeia um furo. Litoral entre o simbólico e o real, eco no corpo de uma vitalidade que não cessa.

Tradução: Ana Lucia Lutterbach Holck
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