A extração como função da escrita em Vista Chinesa: “são os detalhes vão me livrar do todo”[1]

Por Clarisse Boechat

“A escrita é corpo para mim”
Tatiana Salem Levy

“Vista chinesa”, livro de Tatiana Salem Levy, tem como ponto de partida o caso real de estupro ocorrido a sua melhor amiga, Joana Jabace. Ele expõe a densa tessitura entre trauma, luto, memória, amor, esquecimento: a re-escrita de um corpo violado pela catástrofe. Vida e morte se enodam em sua escrita, a linguagem se lapida para dizer desse inominável. A escrita como tratamento a esse inominável foi o ponto que me interessou levar para a conversa com Tatiana, na Noite promovida pela Diretoria de Biblioteca, junto às colegas Ana Beatriz Freire e Maria Inês Lamy.

Existe uma discussão conhecida na literatura, em especial pós-Shoah, que interroga de que modo um desastre se escreve se ele não admite por definição, escrita ou representação. Como se a violência extrema conjugada com a ausência de sentido, transbordasse sempre, resistindo à escrita e revelando um caroço de real que subsiste à representação. Ao ler “Vista Chinesa” eu interrogava o modo como a escrita de Tatiana se moldava perante o excesso inapreensível do estupro. Pareceu-me genial que nesta cena, excepcionalmente, a escritora tenha sido levada a encontrar uma solução estética, um recurso narrativo que foi o abandono da pontuação. Isso só acontece ali. O traumático se escreve como uma devastação em bloco, monólito sem fissura:

“Vejo pedaços, fragmentos daquele momento: uma clareira um cinto um tapa na minha garganta folhas no céu uma boca se mexendo uma língua sapatos um peito nu um tapa um passarinho um soco um cinto folhas caindo do céu outro soco ânsia de vomito gosto ruim uma nuvem dor vai quebrar mosquitos um cheiro ruim dentro outro tapa fora dor dor dor uma jaca duas jacas varias jacas um rosto os detalhes de um rosto um rosto desfigurando um rosto” (LEVY, 2021, p. 12).

Contudo, se na passagem acima a cena traumática comparece como um monólito sem fissura, sem pontuação, ao longo do livro, notamos um re-investimento na vida que aos poucos se dá, ainda que sem apagar os restos que insistem: o cheiro da jaca insistentemente retorna quando menos se espera.

Trago então um segundo recorte de “Vista Chinesa”, onde a autora nos indica no seu trabalho de escrita, as pequenas explosões que ela fez com o monólito estupro, para dali extrair as fissuras, os restos, garimpar seus achados:

“Por isso decidi escrever essa carta para eles, continuei. Contando de uma forma que nunca contei. Me veio essa ideia dos detalhes. Que a cura talvez venha pelos detalhes. São os detalhes que vão me livrar do todo” (LEVY, 2021, p. 64).

Aqui, uma vez mais, a psicanálise se serve da arte quando ela nos ensina que, frente ao horror, a aposta vivificante nas palavras que incluem um destinatário, talvez dê lugar a alguma surpresa…  algo que surja “de uma forma que nunca” foi contada:  pequenos detalhes que, quem sabe, permitam que um real se inscreva de outro modo nessa passagem da experiência ao relato, à escrita – contingencialmente…


[1] Levy, T. S. Vista Chinesa. São Paulo: Ed. Todavia, 2021.  P. 64.
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