VISTA CHINESA – (o que o livro de Tatiana Salem Levy nos ensina sobre o tratamento do trauma)

Por Maria Inês Lamy

 Na epígrafe de A chave de casa[1], encontramos um poema de Emily Dickinson:

“Dizem que o tempo ameniza.

Isto é faltar com a verdade.

Dor real se fortalece

Como os músculos, com a idade.

 

É um teste no sofrimento

Mas não o debelaria.

Se o tempo fosse remédio

Nenhum mal existiria”

Vista chinesa[2], de Tatiana Salem Levy, é um livro belo, contundente, que tenta transmitir uma experiência traumática e seus efeitos. Julia, em seu trajeto cotidiano, familiar, vive horas de terror quando se vê submetida a um homem que a estupra e que, quem sabe, pode vir a matá-la. O Unheimlich emerge em meio à sua rotina conhecida. Diz a narradora: “Um trauma interrompe tudo ao seu redor, interrompe o próprio mundo, embaralha o tempo, a memória, e você é arrastada para fora da paisagem”[3]. E prossegue: “Um combate entre o corpo que já não era meu e o corpo que nunca tinha sido tão meu”[4]. O corpo revela-se estranho, mesmo mantendo-se intimamente seu, e Julia é ejetada da paisagem, de seu enquadramento habitual. O sujeito e o Outro são abalados. Ela chega a pensar: “E se eu fingir que nada aconteceu? Se eu me convencer que nada aconteceu? Que foi só um pesadelo”[5]. Mas Julia e seu corpo sabem que não é assim: as lembranças tétricas a rodeiam, o sexo forçado, os sons, o tom de voz do agressor, os socos, as luvas, os cheiros… Um caminho árduo de elaboração se inicia e é retratado no livro com verdade e quase crueza. Não há como apagar as marcas, sendo impossível retornar a um antes. Julia esquiva-se das demandas e conselhos da família e dos amigos e segue solitária em seu trabalho de elaboração. Com o terror íntimo, ou melhor, êxtimo, só ela poderá se haver.

Após o retrato falado, que a obriga a tentar relembrar o rosto do estuprador, Júlia é intimada a comparecer à Delegacia algumas vezes para apontar o culpado dentre um grupo de suspeitos. Ela não consegue jamais identificá-lo, para decepção da polícia, sobretudo da delegada responsável pelo caso. Esta quer muito prender o culpado, fazer justiça, contribuindo assim para o combate à criminalidade no Rio de Janeiro. Julia nota que a polícia adoraria publicar nos jornais a foto do estuprador com a legenda ‘preso’, mas ela não cai nessa armadilha. Culpabilizar um não criminoso teria consequências terríveis para a vida dele e, ao mesmo tempo, não a pouparia de seu percurso difícil e doloroso.

Logo após o estupro, cercada da família e dos amigos, Julia escuta suas vozes embaralhadas mas, a seguir, diz: “As vozes tinham sumido. Ouvi o silêncio, o deles e o meu. A certeza de que, por mais que eu falasse, nunca conseguiria expressar o turbilhão que havia dentro de mim, me trouxe também a certeza da solidão. A certeza de que somos sozinhos, não só eu, todos nós”[6]. Julia percebe que as palavras nunca darão conta do que viveu, algo em sua experiência é indizível. Mesmo acompanhada pelo amor das pessoas próximas – família, namorado, amigos – sua trajetória de elaboração é solitária.

Aos poucos vemos Julia voltar à vida. O corpo se reabre ao prazer na relação com o namorado. Uma viagem ao México fará diferença. Engravida de um casal de gêmeos e são eles os destinatários da carta sobre o estupro. Segundo ela, “um testemunho, um testamento”.

Diante da pergunta “por que comigo?”, que ela tanto se fez, Julia por fim conclui que “…nunca vamos saber o que a vida teria sido se não fosse o que é.”[7]. Deduz, do trauma, seu ponto de acaso, de contingência.

O final do livro é alegórico. Uma chuva torrencial, dilúvio bem carioca, leva encostas da Floresta da Tijuca, desmanchando e lavando o local do crime. As águas de março fecham o verão carregando consigo provas factuais e vestígios geográficos do estupro. Não há mais como reconstituir os fatos. Só restam as marcas indeléveis no corpo e na alma de Julia, “tudo escrito na pele”[8].

O tempo não cura, nos diz Emily Dickinson. A questão é o que fazer com o incurável. É disso que o livro tenta se aproximar.

[1] Levy, T. S. A chave de casa. Rio de Janeiro: Ed. Record, 2009.

[2] Levy, T. S. Vista Chinesa. São Paulo: Ed. Todavia, 2021

[3]  Levy, T. S. Vista Chinesa, op. cit., p. 19.

[4] Idem, ibidem

[5] Levy, T. S. Vista Chinesa, op. cit. p. 21.

[6] Levy, T. S. Vista Chinesa, op. cit., p. 22.

[7] Levy, T. S. Vista Chinesa, op. cit., p. 102.

[8] Levy, T. S. Vista Chinesa, op. cit., p. 43.

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