Noite da Biblioteca – Desde alguns poemas de Armando Freitas Filho

Por Paulo Vidal

Experiência muito diversa da leitura silenciosa, ouvir esses poemas assinados pela voz de Armando Freitas Filho ressalta que a poesia faz dançar as palavras, faz dançar o som com o sentido, envolvendo nas palavras do poema Absoluto Azul “voz e corpo”, o corpo falante. Ao passo que, nos discursos correntes, o som serve para discriminar o sentido – você disse pata ou lata? -, a poesia injeta som no sentido, resto cantante (Celan) que fura o sentido.

Há experiências cujo relato solicita o fazer poético, entre elas inegavelmente o amor. Ainda em Absoluto Azul ouvimos “e como o amor se lança/ sem esperar a ponte concluir/seus lances, cálculos”. O amor elabora um saber tomando por ponte significantes do Outro, só que estes não levam à margem oposta, tornando necessário que o sujeito coloque algo de seu, invente um saber singular que ressoe no corpo um excesso não formalizável via “cálculos”. Em vez da cor azul absoluto, temos absoluto azul. Ora, o que é se lançar no absoluto, naquilo que só tem relação consigo mesmo, senão sair de si para o Outro, uma alteridade infinita? Entre centro e ausência, a poesia de Armando cria uma erótica não casta.

Apelidemos de vida, gozo, tal excesso que não cabe de todo no texto, que perturba a fluidez usual da palavra nesses poemas, multiplicando as repetições, paronomásias, aliterações, enjambements. Se o mavioso canto do rouxinol classicamente figurou a arte poética, o rouxinol faz aqui a língua gaguejar, explorando uma tensão entre pares antitéticos: mecânico/vivo, inorgânico/orgânico.Antes de engenheiro com seus cálculos, o poeta é escultor, tenta cinzelar o corpo para que dele emerja a carne no poema: “No seu corpo/ vestido de cetim/ tão sentido como este desejo/ segunda pele que desliza/ sobre sua nudez/ em carne viva/ à beira do sangue e do colapso/ eu me debruço/ álacre, mas minha fome/ nem sequer alcança ou arranha/ o escudo de esmalte/ da sua beleza, não atravessa/ seu corpo de cromo/ o lacre/ escarlate do sexo, o nicho/ de verniz e veludo roxo/ onde o beijo/ da minha boca sonha aninhar-se”.

É hora portanto de pôr poema no problema, para que nos ajude na interrogação dos enlaces entre amor, corpo, psicanálise e poesia. Caminhemos um pouco por esses termos, primeiramente no problema do amor: em Freud, grosso modo, o amor, inclusive o amor de transferência, está preso às redes da repetição, aos laços edípicos. Sem menosprezarmos essa vertente do mesmo no amor, registremos como Lacan dirá que “o amor é vazio”, sublinhando assim a oportunidade da criação, da poiesis no amor: as palavras de amor visam bordejar esse vazio impossível de ser preenchido, dar ao obscuro objeto do desejo um nome próprio capaz de dizer algo sobre ele. A poesia nos ajuda a inventar e não simplesmente repetir no amor, a poesia também nos ajuda a afastar a psicanálise do sentido e, portanto, da religião.

A letra matemática lima o sentido decolando da língua, a poesia de Armando Freitas Filho opera na língua contra a língua, ela é antes uma contra-palavra que recolhe os rumores da época, mas para ironicamente subverter as manchetes de jornais, as frases feitas da propaganda, “as palavras gastas da tribo”(Mallarmé).

Quando as palavras cessam de comunicar um pretenso espelhamento do real, os semblantes caem recortando um litoral que se abre para um significante novo, ao qual não responde o Outro, pois é impacto de lalíngua sobre o corpo. Ao infans, ser de antes da entrada na palavra, lalíngua o faz nascer poema, mas não necessariamente poeta. Em Longa vida, lemos Armando dizer “eu sou um livro”, acrescentemos “e certamente poeta” cujos poemas esculpem espaços, recortam formas e figuras, sulcando a folha de letras que dançam, se misturam, se entrechocam.

* Fala no evento da EBP-Rio “Noite da Biblioteca – O amor a partir dos poemas de Armando Freitas Filho”, realizado no dia 18/06/2021, no qual Armando leu seis de seus poemas.

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