“Contratransferência” de Lucia Tower

Por Vânia Gomes

O artigo “Contratransferência” de Lucia Tower foi publicado no IV volume do “The Journal of the American Psycho-Analytic Association” em 1956. 

No seminário X, Lacan faz referência a esse artigo de Lucia Tower para avançar na formulação do campo do desejo e do objeto a. Ao longo de sua articulação faz elogios a Tower, fala de um frescor, de que ela entra em cheio no cerne da questão… e que é de uma coragem especial. 

Lacan evidencia que algumas mulheres analistas ensinam sobre o que mais adiante em seu ensino vai formular como a parte feminina do ser falante.

Citação dele:

(…) Retomo as coisas por nossa Lucia Tower, que me ocorreu tomar como exemplo, por uma vertente do que chamarei de facilidades da posição feminina quanto à relação com o desejo. O termo “facilidades” tem aqui um caráter ambíguo. Digamos que uma implicação ínfima nas dificuldades do desejo permitiu-lhe raciocinar, na posição psicanalítica, senão de maneira mais sadia, ao menos mais livremente, em seu artigo.

Escolhemos apresentar o primeiro caso desse artigo de Tower. Não foi este o caso que Lacan privilegiou no seminário X, mas o escolhemos porque trazia o percurso e questões que avançamos no cartel.

No artigo, Lucia Tower se pergunta: Qual a relação do analista com seu inconsciente numa análise? 

Vamos segui-la… 

Este é o fragmento que Tower traz:

Começarei com um exemplo de uma reação contratransferencial com acting-out. Há muitos anos, uma paciente, após uma reação próxima da psicose, foi encaminhada a uma “análise” com alguém sem formação, e estava furiosa por sua frustação com esse terapeuta prévio. Semana após semana, mês após mês, ela se enfurecia comigo de um modo agressivo, apesar da grande paciência que tinha com ela. Suportei dela um abuso sem antecedentes com outros pacientes. Às vezes, esse abuso me irritava, mas na maioria das vezes gostava muito da paciente, e estava muito interessada em ajudá-la e de certa forma, fiquei surpresa com a minha habilidade de controlar minha irritação com ela. Finalmente, entendi que aquela atitude terapêutica desejável, representava uma complicação contratransferencial. O seguinte episódio chamou a minha atenção quanto a esse problema.

Num belo dia de primavera, saí do consultório, vinte minutos antes do horário desta paciente, com a agenda aberta sobre a mesa. Tive um almoço prazeroso, sozinha, apreciado mais que de costume, depois voltei para o escritório, a tempo para o próximo compromisso, quando me disseram que esta paciente estivera lá, e foi embora extremamente brava. Era óbvio que eu havia esquecido sua sessão, inconsciente e propositalmente, e de repente percebi que estava farta de seu abuso, a ponto da intolerância. A esta altura, comecei a ficar brava com minha paciente e, entre uma sessão e a seguinte, um ódio imenso surgiu contra ela. Parte desse ódio relacionei à culpa, e parte a uma certa angústia sobre como conduzir a sessão seguinte, porque esperava poder ultrapassar todos os abusos anteriores, e tinha consciência do fato de que era impossível continuar suportando aquilo. Imaginei (o que de certo era uma esperança), que a paciente terminaria o tratamento. 

Na sessão seguinte, me olhou com raiva e disse, de forma acusadora, “Onde você estava ontem?” Eu apenas disse, “Me desculpe, eu esqueci”. Ela começou a me atacar com sua censura costumeira, dizendo saber que eu estivera lá um pouco antes. Não fiz nenhum comentário, achei que o melhor era não dizer nada. Continuou por cinco ou dez minutos e de repente parou, ficou um silêncio, e de repente, começou a rir, dizendo, “Bem, sabe Dra. Tower, não posso dizer que a culpo.” Esta foi a primeira ruptura em sua resistência obstinada. Depois desse episódio, a paciente ficou muito mais cooperativa e após uma ou duas pequenas recorrências de abuso, provavelmente para me testar, a defesa desapareceu totalmente, e passou a níveis de transferência profunda.

À primeira vista, isso parece um episódio tão supérfluo que mal merece descrição. Poderia se dizer que eu estava irritada com a paciente e que perdi sua consulta por causa de sua agressividade, o que era verdade. Mas o problema contratransferencial real não era esse. Na verdade, meu acting-out era baseado na realidade e trouxe uma solução para o problema contratransferencial que era ter sido paciente com ela por tempo excessivo. Pude relacionar em detalhes essa minha tendência a certas influências de minha infância. Passei por dificuldades desta natureza em alguns períodos de meu desenvolvimento. Minha compreensão sobre isso era parcial, bem como sua resolução em minha personalidade. Essa resistência prolongada ao abuso não precisaria ter durado tanto se eu estivesse mais livre para ser mais agressiva frente a isso. A maneira pela qual reprimi minha agressividade permitiu que ela se acumulasse até um ponto em que fui forçada a “atuar”, o que não foi desejável.

Assim, teoricamente, uma boa atitude terapêutica, aquela da infinita paciência e esforço para compreender um paciente muito problemático foi na verdade, nesta situação, uma montagem contratransferencial negativa, virtualmente uma neurose contratransferencial de curta duração, que foi sem dúvida um desperdício de tempo da paciente e se não fosse minha repentina solução, através do acting-out, teria durado muito mais. Dei a este pequeno episódio uma grande importância durante muitos anos e, assim, vim a compreender melhor seu verdadeiro significado.

Recolhemos três tempos nesse fragmento:

Primeiro tempo: A paciente estava furiosa com sua frustação com um terapeuta anterior e dirige à Lucia Tower uma agressividade que ela reconhece como “Suportei dela um abuso sem antecedentes com outros pacientes.” No entanto, Tower não se pergunta sobre isso, até que esquece a sessão.

Segundo tempo: Tower interroga esse esquecimento, toma seu acting-out como um corte e retifica sua posição. “Finalmente, entendi que aquela atitude terapêutica desejável, representava uma complicação contratransferencial”. A infinita paciência e esforço para compreender a paciente nesse caso era na verdade “uma montagem contratransferencial negativa”, diz Tower, a resistência ao abuso não a deixava livre para ser mais agressiva frente a isso. A maneira pela qual Tower reprimiu sua agressividade permitiu que ela se acumulasse até um ponto em que foi forçada a “atuar”, o que não foi desejável.

Uma vez retificada sua posição, um vazio se destaca com seu silêncio na sessão seguinte. Ela apenas disse, “Me desculpe, eu esqueci”. Não faz nenhum comentário. Consideramos no cartel que esse silêncio foi um ato, que opera a partir de um esvaziamento da posição do grande Outro.

Terceiro tempo: Esse silêncio tem efeito de corte também para a paciente que se implica no seu sintoma. “Bem, sabe Dra. Tower, não posso dizer que a culpo”. Esta foi a primeira ruptura em sua resistência obstinada diz Tower e, a partir daí essa defesa desapareceu dando lugar a uma transferência profunda.

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