O trabalho de Escola em tempos de travessia: exílios, abrigos, oásis.

Por Andréa Reis Santos

“Seu oásis, Lacan o chamava de uma Escola”1

Iniciamos esse cartel para estudar a lógica de Escola, como antídoto ao automaton que poderia advir da rotina institucional. As eleições presidenciais tinham acabado de acontecer e o clima era de apreensão com a perspectiva de tempos sombrios para o país. Nesse cenário queríamos acima de tudo trabalhar para manter um ambiente propício à lógica anti-segregativa da psicanálise, propício ao tanto de vida e de desejo que a sua experiência pode produzir, na contramão da desesperança generalizada que reinava em torno.

Começamos pela Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola2, texto de virada, onde um Lacan vivíssimo e herético subverte completamente a lógica da formação do analista. Texto que tem efeito de ato. Interpreta a Escola, tira tudo do lugar quando desloca do centro da formação a figura do analista experiente e põe em destaque o AE, fruto da experiência de análise. Gosto muito de um texto de Romildo3, onde ele afirma que a Proposição é uma proposta institucional, que sua marca essencial é a articulação entre o funcionamento da instituição de psicanalistas e a experiência analítica, ou entre a instituição e o discurso e, que essa articulação resulta em um equilíbrio nada estável. 

É justamente essa instabilidade que nos leva a perguntar sobre como orientar o trabalho de Escola para que a psicanálise possa vez ou outra se hospedar ali. Que tipo de casa é capaz abrigar uma Escola? Naquela época sonhávamos com uma “Escola Oásis”, tomando emprestado essa imagem forte de Hanna Arendt4 que tinha sido usada em belos textos de Maricia Ciscato5 e Paulo Vidal6. Sonhávamos com uma Escola que servisse de abrigo, ponto de parada e de respiro em uma travessia que não parecia nada promissora.

Não imaginávamos a dimensão e a aridez do deserto que nos aguardava. A busca pelo asilo, um abrigo, é uma questão mais que atual. A pandemia e a imposição do isolamento interromperam qualquer projeto de ocupação de territórios concretos em sintonia com a premissa freudiana do inconsciente, de maneira propícia, por exemplo, à circulação do múltiplo, lugares anti-segregativos.

Foi nesse cenário que nos engajamos no desafio de conversar sobre os exílios, tema que foi crucial para não perdermos o rumo. Exílios, no plural, nos conduziu a um enlace com outros saberes: Exílios fala de segregação, fala de fronteiras, de racismo, de território e de extimidade . Se partimos do nosso solo mais familiar, que é o campo da psicanálise, nos encontramos às voltas com o sujeito que é exilado por natureza, que não tem lugar garantido, que precisa pedir abrigo, encontrar meios de habitar um corpo, uma língua, um lugar na relação com o outro. Precisa achar meios de fazer caber no mundo o singular de sua existência e com ele criar laços no coletivo.  

Isso já está esboçado em Freud, com o descentramento do eu. Lacan o traz para o centro da cena quando toma Joyce como o exemplo encarnado do exilado na relação única que estabelece com a língua, e Miller7, por sua vez, quando destaca de Lacan e transforma em conceito o termo extimidade que serve pensar o exílio, mas não só. Êxtima é a posição do analista na experiência da clínica, é também a natureza própria do sujeito do inconsciente, da sua constituição em relação à alteridade do Outro, do sujeito frente ao real da diferença sexual, exilado fora de si, fora de sua humanidade. 

Essa lógica, que é a nossa lógica, de “todos exilados”, carrega uma verdade, mas ela requer de nós o cuidado de não deixar com que absorva completamente, que encubra o que há de particular em cada forma de exílio8. Principalmente em um momento no qual o termo exilado passou a encarnar mais do que nunca os efeitos de segregação e de desigualdade social produzidos pela lógica feroz e desumana do capitalismo. 

Trabalhamos em torno dessa afirmação forte: “o real se dispõe, não no começo ou no fim, mas na própria travessia”. Avesso da fantasia neurótica, de que a vida para valer está sempre por vir ou fica presa atrás em um passado, seja traumático, seja idílico. É na travessia que os encontros capazes de produzir efeito de acontecimento e de presença se dão. É no durante que as coisas acontecem. 

É o que diz Miquel Bassols9:  ao invés de esperar a luz no fim do túnel, esperar o fim da pandemia, a vacina, a tão proclamada “volta ao normal”, o que ele sugere é ficar por ali se arranjando com o que há, sem esperar a saída. Virando-se dentro do túnel. 

É assim que está sendo o trabalho de Escola nesses tempos de travessia. Estamos às voltas com os arranjos coletivos em um trabalho sem garantias, seguindo em frente sem nenhuma pista do fim do túnel. Os tempos prometem um futuro mais que sombrio para o nosso país e, para pensar em um modo de funcionar no mundo quando o mundo se apresenta na sua face de horror, na sua face mais dura e árida, voltamos a apelar para a figura forte do oásis, novamente os oásis, não como lugar de repouso, de relaxamento, destinado à esperança, mas como base de operação contra o mal-estar na civilização10, espaços que têm o poder de inverter a lógica mortífera da segregação. A pergunta se mantém mais forte que nunca: seria demais pensar em uma Escola capaz de produzir e manter oásis, como um espaço de autonomia e de resistência? Uma Escola que sustente acontecimentos capazes de criar vida pulsante na aridez do deserto e, agora além disso, na escuridão do túnel?

Notas

  1. Miller J.A Jacques Ranciére, uma política dos Oásis. 2017 (dica preciosa da Maricia a quem agradeço muito)
  2.  Lacan, J Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola In Outros Escritos 
  3.  Romildo do Rêgo Barros A proposição é uma proposta Institucional In Correio 81
  4.  ARENDT, H. De deserto e de Oásis. Em: O que é Política? – Fragmentos das Obras Póstumas Compilados por Úrsula Ludz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.
  5.  CISCATO, Maricia. Os oásis nossos de cada dia. Disponível em: <https://loucuraseamores2017.wordpress.com/2017/10/31/os-oasis-nossos-de-cada-dia/>.
  6. VIDAL, Paulo. Provocado pelo Corpo Elétrico. Disponível em:  <https://loucuraseamores2017.wordpress.com/2017/11/08/provocado-pelo-corpo-eletrico/>. 
  7. Miller, J. A. (2011a). Extimidad. Los cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller. Buenos Aires: Paidós.
  8.  Marcus André Vieira insistiu nessa advertência durante os encontros do cartel que coordenou as Jornadas sobre Exílios: sintoma corpo e território.
  9.  Bassols, M. https://zadigespana.com/2020/04/05/coronavirus-que-nos-podemos-encontrar-al-final-del-tunel/
  10.  Miller J.A Jacques Ranciére, uma política dos Oásis. 2017
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