Amarrações no trabalho de Escola: consentir com o que há, saber perder o que não está

Por Renata Martinez

Posso dizer, agora com um tanto de certeza, que a lógica de funcionamento do cartel foi uma das apostas fortes dessa diretoria. Esse trabalho no pequeno grupo, com tempo e número de participantes limitado, onde é preciso dar de si – solitariamente –, mas entre alguns, foi inventado por Lacan e nomeado como “orgão de base”1 na refundação de sua Escola. Reiteradas vezes, Miller sublinhou a importância do cartel, destacando que seu trabalho “é congruente com o trabalho da Escola”2.

O trabalho da Escola, com artigo definido – fazer viva a causa analítica na civilização -, pode-se delimitar numa preciosa citação do Ato de Fundação3,  mas também é preciso derivá-lo de inúmeras maneiras, expandi-lo pelas mais diversas tarefas exigidas pelas instâncias e cargos que fazem consistir esse Outro-Escola. Quando assumi a Diretoria de Tesouraria e Secretaria, esse era o meu imbróglio: sabia dos riscos implicados no império da burocracia sobre o desejo, mas como escapar disso?  Como furar o já constituído do funcionamento da instituição sem desfazer completamente o arranjo fundamental e necessário para que o trabalho aconteça?

Entendi ou apenas acreditei que o cartel poderia cuidar para que eu não fosse tragada pelas planilhas e números, e nem afogada pelo transbordamento das águas. Entre repetição e contingência, nesse funcionamento em tensão, havia muito trabalho a fazer.

Do funcionamento de um cartel, Lacan também diz que “não se espera nenhum progresso além daquele de uma exposição periódica, tanto dos resultados quanto das crises de trabalho”4. Assim, a partir da provocação à elaboração que partiu da atual Diretora de Cartéis para estarmos hoje aqui, me coloquei a pensar sobre esses dois anos de entrelaçamento do cartel e da diretoria e o quanto disso poderia recolher como “resultado”, mas também e, principalmente, como “crise”, tentando elaborar um tanto de saber com a experiência atravessada.

Partimos da Proposição5 rumo ao desconhecido e nos permitimos seguir um fluxo de leitura bastante errático. Os textos apareciam conforme a necessidade da vez. Nossos encontros eram marcados um a um, com espaços de tempo muito irregulares, chegando a ficar 5 meses sem acontecer. As desmarcações eram frequentes, pois muitas vezes nos víamos engolidas por atividades ou situações emergenciais na Seção. Enfrentamos também, cada uma a sua maneira, um certo imperativo superegóigo sobre o texto não lido, o dever não cumprido… Com a chegada da pandemia e a presença maciça do “on-line”, os encontros passaram a acontecer sempre colados às reuniões de Diretoria e não era raro o mais-Um entrar e ainda continuarmos por algum tempo com questões levantadas anteriormente. Assim, nesse amálgama diretoria/cartel, descompletado pelo êxtimo, nasceu a ideia do formato das XXVII Jornadas da Seção Rio e, a partir daí, nos vimos por meses fazendo parte do cartel ampliado.  O cartel no cartel, entretanto, não se dispersou, ganhou novos contornos e nos trouxe até aqui.

Fiquei pensando sobre o que possibilitou, apesar de tantos percalços, que construíssemos esse caminho. Foi então que recuperei, graças a Arquivos 16, os textos de Rodrigo Lyra6 e Nohemí Brown7 da última Jornada de Cartéis. Ao relê-los, entendi que, de fato, ao longo desses dois anos, colocamos o dispositivo à prova e verificamos seu uso. 

Na lida tenaz com a precariedade em jogo, fizemos um movimento do Ideal à realidade efetiva (Wirklichkeit), possibilitando assim o movimento. Ao mesmo tempo que consentimos com algo que estava ali (uma marca singular, um real?), soubemos perder o que acreditávamos que poderia estar.  

Com bastante alegria, posso afirmar que nesse trabalho, a causa analítica foi, em si mesma, uma abertura ao real que tocou e fez vibrar o laço singular de cada um com sua Escola.

Notas

1. Lacan, J. D’Écolage. In: Manual de Cartéis. Belo Horizonte: EBP e Scriptum. 

2. Miller, J-A. Novas reflexões sobre o cartel. In: Manual de Cartéis. Belo Horizonte: EBP e Scriptum

3. – “[trabalho] que, no campo aberto por Freud, restaure a sega cortante de sua verdade; que reconduza a práxis original que ele instituiu sob o nome de psicanálise ao dever que lhe compete em nosso mundo; que, por uma crítica assídua, denuncie os desvios e concessões que amortecem seu progresso, degradando seu emprego”. 
Lacan, J. “Ato de Fundação”. In: Outros Escritos. Ruo de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, pg. 235.

4. Lacan, J. D’Écolage. Op.cit

5. Lacan, J. Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editora, 2003.

6. Lyra, R. A lucidez atual do cartel. In: Arquivos da Biblioteca n.16. Rio de janeiro: EBP Seção Rio. Dezembro 2020.

7. Brown, N. O cartel e seu funcionamento na lógica de Escola. In: Arquivos da Biblioteca n.16. Rio de janeiro: EBP Seção Rio. Dezembro 2020.

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