Por: Fernanda Otoni
A pergunta O que é uma sessão de análise? fez parte do convite para estar aqui com vocês hoje e me fez revisitar outra pergunta que se instalou desde que Romildo do Rêgo Barros, Diretor da EBP, me passou o título do Encontro Brasileiro: o sintagma “Analista:presente!” seria só um outro modo de se referir ao conceito “presença do analista” ou dá um giro e pede um desdobramento?
Presente é o mesmo que presença?
O analista, em carne e osso, não precisa estar presente para que a presença do analista opere. Desde antes do início de uma análise, a presença do analista se manifesta nos sonhos, na sala de espera, depois do término da sessão – é um efeito da transferência. Com Freud e Lacan podemos ler que a presença do analista pode acontecer em defesa da eclosão de outra coisa que ali se faz presente! «De repente eu realizo o fato da sua presença…» A presença do analista é aí agalma e véu, formação do inconsciente.
Mas o título do XXIV Encontro Brasileiro também parece evocar, convocar ao que, na sessão analítica, se faz presente como uma irrupção: é o instante onde o véu se suspende e o real da coisa se passa como um murmúrio, equívoco, uma vertigem, vociferação. Sua passagem apressa o ato como um efeito que a testemunha. Será esse o instante oportuno de uma sessão analítica? Quando a presença e o presente se encontram, no esp de um laps, e acontece uma cessão do grão analítico?
Sobre a sessão analítica, Miller dirá no curso Los usos del lapso: “A sessão analítica se apresenta como um encontro […], quer dizer, que dois corpos ocupem o mesmo espaço durante certo lapso de tempo, que convivam no espaço durante certa duração de tempo.”[1] Um convívio cuja dissimetria faz forçamento, instaura um compasso/descompasso, entre os tempos, pois esses dois não estão animados por um mesmo movimento. Para Miller, “o analista é uma atração”, com toda equivocidade que evoca esse termo, “os corpos gravitam até ele”.[2] Há tração, tem algo aí que puxa, atrai. Vai-se ao seu encontro. Há, então, um valor nesse encontro, um valor de tração e cessão!
Como perseguir essa ideia?
Da atração ao êxtimo
Lacan diz que o analista só pode sustentar sua presença no inconsciente, ao “experimentar-se sujeitado à fenda do significante”[3]. Podemos ler aí que o analista também está sujeito a ceder a atração, a consentir com a fenda, sempre lá, mas nem sempre aberta. J.-A. Miller, ainda em Los usos del lapso, menciona que na sessão analítica, ao ter reduzido o campo perceptivo, o sujeito é reenviado “ao mundo interior”[4], é atraído ao vazio do ser… A dimensão tórica opera aí. É quando ele experimenta pensamentos sem conexão com o mundo externo. Miller dirá assim: “Esses pensamentos têm um caráter bizarro e deixam ver que estão motivados por outra coisa”[5], de tal sorte que a sessão analítica induz a experiência de extimidade, algo que brota no sujeito sem que saiba sua raiz ou mesmo evoque seu controle. Tem algo aí que existe “não sendo”, para dizer com Lacan, uma ex-sistência que não cessa de não se escrever, um existir sempre presente. É a esse lugar ao qual se é atraído: ao «lugar de sujeição», dirá Miller, sujeitado “à mensagem do êxtimo”, lugar a que Freud deu valor desde a interpretação dos sonhos.[6]
Fato é que uma análise gira em torno do ponto irredutível, o que existe sem ser, o furo da origem que ex-siste e em torno do qual a existência se arma na trama de um corpo falante, nas dobras do tecido ficcional. O sujeito, numa sessão analítica que “recorta na continuidade temporal uma duração especial”[7], é convidado a remexer na trama do tecido, atraído pelo irredutível que, sem ser, pode parecer. E nessa fenda aberta pelo desdobramento temporal, pode-se ler a mensagem do êxtimo. Como?
O tempo como analista e o corpo como tecido
Maria do Rosário Collier do Rêgo Barros, em seu texto “Tempo, corte e ato: o acontecimento analista”. que animou o encontro preparatório para o XXIV Encontro Brasileiro, a partir do Eixo II, desenvolve a ideia de que há na textura histórica algo que se passa e que cabe ao analista estar sensível a isso, ao vivo da incidência traumática! O inconsciente, isto é, o dizer, trabalha como um tecido. Um tecido da língua, matéria para cortar, furar, tecer para produzir um efeito de real. Rosário mostra como Lacan “atravessa o tempo do sentido histórico, para buscar no tempo lógico a presença do tempo libidinal”. Portanto, o tempo que conta numa análise é aquele que gira em espiral e não de forma linear, o tempo que gira em torno de um furo…. atraído pelo trou. Tempo libidinal, do qual nunca se sai. Uma análise persegue esse tempo. Mas não é sempre que se entra nele, e quando entra, logo dele se sai. Quando acontece, eis o instante analítico. Para entrar nessa dimensão do tempo, Lacan toma o texto analisante como uma textura, um material têxtil, um tecido. O tempo da sessão, em ato, remexe e força o tecido, através de reviramentos na superfície desse corpo têxtil, forçando-o a trabalhar, a reciclar o que está lá desde sempre, mas não para sempre da mesma maneira. Miller irá dizer que o analista “encarna no presente […] a inscrição passada na fala”, mas isto não quer dizer que “partiria em direção ao passado – ao contrário – isto ocupa o presente do analista enquanto corpo vivo”[8]. Portanto, “o tempo do analista, o tempo como analista, é regido por um já está aí”, alojado na trama, um “saber já aí”[9]. É o instante, quando um analista presente acontece, no forçamento do tecido quando a língua se revira, tal como ensina Lacan, pois é só assim que “um psicanalista pode fazer soar outra coisa que não o sentido”[10].
Da clínica: Nada como um vazio
Trago para nossa conversa o testemunho precioso de Sérgio de Mattos. Ali lemos como a dissimetria força o alçamento a uma outra dimensão, revirando o texto, cruzando presença e presente, na sessão analítica, dando a ver outra coisa que, por sua vez, convoca a um novo giro. Ele relata que a primeira sessão, em que se encontrou com um analista de orientação lacaniana,
[…] um analista presente e interessado, que ao saber que já tinha feito análise antes, perguntou o que ele pode saber com essa experiência. Ele respondeu que havia conseguido saber o que era o desejo de sua mãe. E sem nenhum constrangimento, o analista corta a sessão ao declarar: “se você sabe qual é o desejo da sua mãe, então uma psicanálise não pode fazer nada por você!”.[11]
O analisante fica completamente aturdido com essa intervenção cujo impacto faz cair um saber instalado, um saber articulado, uma mordida real no corpo do saber, forçando uma abertura que, segundo ele, se trata de uma intervenção que “me punha cara a cara com um não saber, me obrigava imediatamente a me situar […]”.
A dissimetria aí é evidente! No forçamento, um rasgo, um dizer que em ato corta, força um reviramento no tecido do saber que parecia bem costurado, perturba a defesa – separa S1-S2. Parece haver ali, por um instante, o choque de dois corpos no mesmo tempo e espaço! É um momento vivo, aceso pelo rastro do gozo acomodado no saber sintomático que servia de entrave e mortificação. Não há espaço para elucubração de sentido. O efeito do vivo é sentido no corpo, aturdido.
“Com um sorriso, o analista me conduziu até a porta e, com uma mão em meu ombro, marcou a próxima sessão.” O analista está lá, en corps presente, aguarda a operação aturdito que revira a trama estabelecida. O falasser trabalha:
Na sessão seguinte, me pergunta se eu havia sonhado. Tinha feito um sonho: minha mãe havia morrido. Ao acordar, lembrei-me de uma cena de meus cinco anos, até então esquecida: após uma briga do casal, minha mãe se fecha em seu quarto anunciando a intenção de se matar. Diante da porta trancada, grito, soco desesperado. Nenhuma resposta. […] Em seguida, me dá um branco; desapareço. Recobro meus sentidos e memória quando um médico sai do quarto e diz que ela dormia. Era a cena traumática, chave de minha neurose infantil: intensa angústia, terrores noturnos, nervosismo, falta de lugar, doenças.[12]
O que surgiu no dizer, a partir do corte no saber, foi a cena traumática! Acede a uma ditmension que atualiza o troumatismo apagado no dizer e o presentifica, ativando a pulsão que é “no corpo, o eco do fato de que há um dizer” cuja materialidade é fisgada na temporalidade real da sessão. O paciente vem com sua rede de sentido, e o analista vai na outra direção… na direção do sem-sentido. Dissimetria que provoca um corte entre o S1-S2. Torce, retorce… o tecido e faz aparecer outra coisa.
Isto nos interessa porque os reviramentos, as aberturas, os cortes e deslocamentos que operam no percurso de uma análise estão sempre referidos a esse instante, quando numa sessão analítica há um corte, uma cessão. Quando aí se toca, algo cede, a trama vibra e se revira, podendo arranjar-se de outra maneira, ler de outro modo o que está escrito. Mas esse encontro é contingente, a abertura a essa outra dimensão acontece às vezes e logo volta a se fechar. Logo, o que foi já não é… a trama se refaz, mas não mais da mesma maneira. A trama já não se encontra mais como antes, não se lê da mesma maneira o que estava escrito, um giro foi dado. E à medida que o sujeito atravessa o tecido da fantasia, ele segue seu descer rumo ao redondel queimado da mata das pulsões, descascando as ficções até chegar ao umbigo, furo original que o causa… para poder ler ali a mensagem do êxtimo, o furo em torno do qual se amarrou como um corpo falante, como podemos ler no relato da última sessão de análise, que deu título ao primeiro testemunho do Sérgio de Mattos, “Nada como um vazio”:
Nas vésperas de encerrar mais uma temporada, chego para a sessão e sou informado que a analista não estava, remarcando para a manhã seguinte. À noite, revivi a atualização dos terrores noturnos da minha infância. Entre vigília e sono, vivenciei a minha morte com um insuportável pesar. Ao mesmo tempo havia algo novo, desfrutava de um vazio em que o “não ser” não era penoso […] De manhã um espasmo me acorda, sentido como a expulsão de algo maléfico em meu ventre. Relato na sessão o que havia se passado, e meu voto, expresso em tom de gracejo, de que aquele mal, uma maldição – mal dicção – tivesse enfim me deixado. A analista corta e se levanta. De modo afetivo, se despede e diz, de maneira repetida e melodiosa. “Me chama, me chama, me chama”. […] Fui afetado por uma amorosidade confiante, um vazio contente, um desprendimento dos pensamentos e o encontro com uma identidade vazia de mim. O corpo, descongestionado de interpretações, tornou-se aceso, espacializando-se como algo que poderia ser chamado de um corpo koan. Era aquilo. O vivo vazio de ninguém, e mais, estava vazio do nada, em um sítio, íntimo, receptivo, anônimo e impessoal. Estava certo de que havia chegado a um limite que paradoxalmente parecia se abrir a algo infinito.[13]
Vimos como o tempo de uma análise corre em uma espiral, que alcança no fim o que estava lá desde o início. Presença e presente se encontram, por um instante, num só tempo e espaço, onde advém os viramentos, desdobramentos. Nessa passagem do real, há uma suspensão do tempo, e a atração própria a esse lugar atemporal provém do fato de que isso sempre se situou fora do tempo e se faz presente no real, tempo do qual nunca se sai. Essa temporalidade singular parece marcar o esquema retroativo de Lacan.
Ao perseguir, na textura histórica de uma análise, a trama libidinal cuja dimensão temporal, única e original incide sobre a superfície têxtil do dizer, da entrada ao final da análise, a sessão analítica acusa no presente a passagem do real que corta e revira o inconsciente cadavérico que adoece e ofusca. Surge desse corte algo novo: um vivo contentamento sem sentido do vazio do viver. Do saber do desejo da mãe, mortífero, o trauma se revira para dar lugar ao saber vívido en corps, na forma de uma alegria, chama que acende. O laço entre tempo (instante) e espaço (matéria e furo) se desdobra no tempo, singular e original, e se abre a ler de outra maneira. Portanto, a imagem da espiral é muito boa pois traz a ideia de um furo ao centro e o giro que se faz em seu entorno. O que está ali presente desde sempre subverte seu lugar na trama do falasser e nos faz ler, como numa sessão analítica, numa análise, que a morte na vida se recicla, cedendo o entrave para fazer do sintoma satisfação. Trata-se de um instante oportuno! Extrair vida da morte!
E me pergunto afinal, questão que entrego a vocês, se uma sessão analítica talvez não possa ser lida assim, só isso (o que não é pouco): uma cessão que abre a um instante oportuno; um corte que dá a ler algo novo que prove o gosto da vida de uma outra maneira; uma vida que vira e se revira sobre um fundo de silêncio, irredutível, sempre presente, levando o falasser a consentir e saber fazer com a cessão desse grão; tomar sua inexistência como bússola, pra se virar no giramundo, com sua ginga, seu estilo… no tempo da vida que é só seu e de mais ninguém.
Setembro/2022