O corpo do senhor – Psicanálise e Política – Seminário da EBP-Rio (quarto encontro)

Segue o link do seminário Seminário Psicanálise e Política 4 (27.06.2022): https://drive.google.com/file/d/1EPu7zy6b6hzN9Qei3Wf82-ko9ksTs4g_/view?usp=sharing

 Neste quarto encontro, encerramos o semestre, mas, não o trabalho e a discussão sobre Psicanálise e Política, investigando esse tema à brasileira.

Após assentarmos nossas bases a partir da formulação “identificar-se com o sinthoma”, propusemos a leitura de algumas mudanças no Outro da cidade, a seguir estabelecemos quais seriam nossos guias, nossos intercessores no sentido que dá J. A. Miller a este termo. São os que não se apoiam no imaginário do corpo e da identidade para sustentar suas posições e ações, às vezes de sobrevivência, na cidade, mas incluem em sua estratégia o horizonte da diferença absoluta, da singularidade real que presida uma análise.

Mantendo o corpo em cartaz, vamos encerrar, hoje, o semestre trazendo questões sobre o corpo do mestre.

1)  O mestre, do discurso do mestre de J. Lacan, pode ser assimilado ao senhor colonial? (marcus)

Definamos o colonizador como aquele que, inserido no comércio escravagista, participava da distinção entre o que seria humano ou não. Essa definição instituiu-se nas invasões, no encontro com os outros modos de civilização e de gozo, mas sustentamos, com Mbembe, que foi a plantação, sobretudo nas colônias da américa que sintetizou essa aliança entre segregação de corpos e mercado que ainda hoje dá as cartas.

Após a suposta abolição dos escravos em nosso país, essa escravização dos corpos negros e indígenas foi alterada, mas, não abolida. Sustenta-se, entre outras coisas, por uma ficção, pela contraposição imaginária entre os corpos negros, indígenas e o corpo branco. O corpo do colonizador, do invasor, nasce, assim, como o do branco europeu, cristão, patriarcal e passou a ser o corpo do mestre.

Em outros termos, o branco é o que, em nossa cultura, tende invariavelmente a ocupar o lugar do mestre, no discurso do mestre tal como definido por Lacan no S17. Do ponto de vista do simbólico, os complexos de castração e de Édipo, como definidos por Freud e formalizados a partir da teoria do Nome-do-Pai por Lacan, que descrevem o jogo de forças da organização e distribuição do gozo pelo recalque, enunciam seu discurso. É possível associar esse discurso ao do patriarcado, mas não são a mesma coisa. Os enunciados patriarcais são os que tendem a ocupar o lugar do agente no discurso do mestre lacaniano em nossa cultura. Muitos outros, porém, podem ocupá-lo na dependência do contexto e das situações particulares.

Quando dizemos, portanto, corpo do mestre estamos nos referindo ao seguinte conjunto:

1) Enunciados simbólicos (os da naturalidade da família nuclear, por exemplo, ou do universalismo europeu), associados aos

2) Predicados de uma branquitude encarnada (cor da pele, dos olhos, forma do cabelo etc)

3) Estruturado pelo regime do recalque segundo a formalização lacaniana de quatro elementos: sujeito (S barrado), objeto (a), comando (S1) e conhecimento (S2).

O enlace entre esses três aspectos se dá na singularidade da experiência de cada um, mas cabe a pergunta:

2)  Quem tem o corpo do colonizador? (Renata)

Falamos nos três encontros sobre as estratégias criadas por nossos guias para existirem como humanos, gozando de acordo com o corpo do mestre. O que seria gozar de acordo com o corpo do mestre?

Manter a lógica da mestiçagem enquanto uma solução para a civilização, embranquecer-se, destituir as religiões afrodescendentes, tomar como uma verdade a lógica branca europeia. Podemos assegurar que muitas dessas soluções foram definidas pelo próprio colonizador e podemos afirmar que os guias foram se apropriando das mesmas, enquanto um ideal, pois, como avisa Neusa Santos Souza o Ideal do negro é branco, pois, sem se apropriar deste ideal os guias podem ser eliminados, visto que, são considerados pelo outro, pelo colonizador branco:  agressivos, loucos e selvagens até hoje. O objetivo do branco é “salvar” os guias do seu modo de vida ou eliminá-los.

Assim, vivíamos e vivemos ainda uma era em que o corpo do mestre, do colonizador diz quem é homem e quem não é, o mestre decide, ao escravizar, quem não são os homens. Porque que o Ideal do negro é branco? Porque o branco assume desde sempre a sua condição de humano, assume o que é o homem, como afirma FANON no livro Pele negra máscaras brancas. (p.27)

Esse que possui o corpo do mestre sabe que tem um corpo? O que dá ao branco esse reconhecimento imediato da sua humanidade? Que corpo é esse? Qual a sua cor? Qual a sua raça? Ele acredita na sua imagem? Como circula pelo mundo? Se somente eles, os mestres, são homens, estes teriam um pacto, inconsciente, de reconhecimento da própria humanidade? O “Pacto da branquitude” pode ser reconhecido como um pacto inconsciente?

São perguntas difíceis de serem respondidas e nem pretendemos, como psicanalistas, tratá-las universalmente, pois, como nos mostra o texto de Marcus André Vieira “Meus dias de branco” abordar essas questões a partir da psicanálise não é universal. É necessário delimitar o “universal, o particular e o singular” de cada caso, uma tripartição apontada por Lacan, exemplificada no texto. Com isso, teremos que ler a cada vez, no um a um de cada caso quem possui o corpo guia ou quem possui o corpo do mestre e o que significa ter um corpo. O que aquela pessoa pode dizer sobre isso, em qual dos lugares ela se vê e, o que surge do seu inconsciente.

O que poderia, aquele que possui hoje, o corpo do mestre, nos dizer sobre a raça, a interseccionalidade ou a necropolítica? Quais são as estratégias dos corpos mestres para manter seu gozo como o único autorizado?

3) A suposta democracia racial (renata)

A tentativa em criar uma suposta democracia racial, uma mistura de raças seria uma das formas de agredir e apagar a história, as contribuições do povo negro e os modos de gozo?

Não seria uma agressividade a mestiçagem no Brasil? Não dizer da cor da pele ou embranquecê-la? Não é um pedido qualquer, pois, exige-se que o negro melhore sua raça casando-se com brancos ou tendo filhos de brancos, mas, o branco não quer ser negro. Não quer ocupar o lugar que o negro ocupa. Podendo muitas vezes tirar o olho disso e se manter em sua branquitude.

Não seria importante o psicanalista branco se perguntar sobre o seu corpo? No texto, Marcus André, diz que não é possível a questão “tornar-se branco tal qual tornar-se negro”. Provavelmente porque o branco sempre foi incolor, somente humano. E, talvez, por não se perguntar sobre seu corpo branco e o que ele significa no mundo. Essa pergunta implica o reconhecimento do seu lugar enquanto opressor. Podemos supor que isso não é fácil.

Além disso, a raça branca, quando se sente ameaçada imaginariamente, quando os corpos dos guias são reconhecidos ou ocupam os espaços que sempre foram destinados a esse grupo hegemônico, ela só faz recrudescer ainda mais o seu modo de gozo, definindo-o para todos e sustentando ainda mais a sua branquitude.

Ao se sentir ameaçada em seu poder e modos de gozo, a violência, a agressividade aumenta demasiadamente e isso pode ser percebido com o crescimento da extrema direita e do neonazismo no Brasil apresentado, por exemplo, nos textos de Romildo do Rego Barros, Henri Kaufmanner e Marcelo Veras na mesma edição da revista Correios que está o texto de Marcus André Vieira. https://www.ebp.org.br/correio_express/

4) O que o corpo do mestre demonstraria em termos de raça, interseccionalidade ou  necropolítica? (renata)

Podemos supor, que a ameaça sentida por aquele que possui o corpo do mestre, onde o gozo do outro, do estrangeiro, ameaça o gozo que ele considera humano, essa angustia, não implica uma pergunta sobre o próprio corpo, ao contrário, cria um esforço de eliminação do estranho. Um esforço violento de manter o identitarismo branco, definindo, a cada vez, de forma agressiva e perversa quem é humano e quem não o é. Determinando quem são os homens. Intensificando aí uma fraternidade dos corpos, uma fraternidade branca.

Essa fraternidade não implica uma resistência, uma luta pela vida, uma sobrevivência, mas, é uma fraternidade que sustenta o poder, o racismo e a violência contra negros, imigrantes, LGBTQI+, nordestinos, judeus… todos aqueles que estão fora da humanidade branca, cristã, cis e de um Deus único. Todos os estrangeiros que furam o ideal humano. Com isso, dizer que o homem é semelhante a Deus só é possível quando fica definido de que Deus estamos falando.

Esse recrudescimento da branquitude, em uma posição neonazista não é tão antiga quanto a escravização dos povos. Podemos afirmar também, que a delimitação de quem poderia ser vendido, um corpo que se torna moeda de troca, aconteceu com o corpo negro, com esse período escravagista, em que os corpos são comercializados.

Em relação aos neonazistas, da Alemanha de Hitler, evidencia-se uma reposta rápida contraria à violência ariana, não universal, mas muito mais ágil que a resposta dada ao tráfico negreiro. Tivemos, na escravização dos negros, a chamada abolição, que não foi uma abolição de fato, pois, sobre o racismo, que ainda vivemos, a resposta vem a passos lentos, muito diferente da resposta dada, na segunda guerra, pelo mundo que conhecemos.

Podemos afirmar que o neonazismo, o recrudescimento da branquitude, de um grupo hegemônico, de uma defesa e resistência que implicaria o pior, é uma tentativa de manter o poder e a própria humanidade, pois, matar o estrangeiro, o que faz furo a essa hegemonia garante o “ser homem”.

O que cabe ao corpo branco além dessa violência para manter a hegemonia e a sua humanidade?

5) Nossa proposta (renata e marcus)

Talvez, se reconhecer branco: “Não incolor, cor da ignorância do poder, mas da clara cor do opressor” Saber-se branco é ter que se perguntar sobre o seu lugar, qual é o imaginário e simbólico que perpassam a sua existência, é se perguntar sobre si, esvaziar imaginário, repensar o simbólico que envolve seu corpo. Com isso, ao tratar deste corpo, o branco pode criar condições novas e deixar de dizer, como senhor, detentor do poder, sobre o corpo do outro.

Nos casos da branca e da negra trazidos no texto podemos afirmar, com ressalvas, que dizer do corpo do outro não faz uma análise existir, não foi dito para a branca que ela tinha um corpo negro, isso não quer dizer que, em algum momento, algo em relação a isso não possa ser dito, é preciso escutar, teremos que ver no caso a caso, mas, até para dizer é necessário escutar que corpo cada analista tem e como sustentar isso na transferência. Uma questão que nunca foi simples, mas, que na atualidade, de acordo com o novo imaginário, pode ser algo a ser visto e lido de uma nova maneira, avisados das questões sobre a raça.

O analista, também, não interviu no discurso identificatório, identitário da paciente negra, discurso que sempre foi tratado pelos psicanalistas, mesmo com a advertência de Laurent, como um discurso a ser destituído. A grosso modo não é disso que se trata também uma análise, é preciso tempo para ver. É preciso tempo para ver, pois, a paciente se viu, se reconheceu negra, é preciso tempo, então, para compreender e concluir o que significa ter esse corpo ou o que fazer com isso.

O analista com o corpo do mestre, por sua vez, também precisa de tempo: “Sei agora como foi no dia em que senti na carne o contraste entre a branca e a negra que me vi branco. Não incolor, cor da ignorância do poder, mas da clara cor do opressor. Não me tornei branco, pois não houve nisso nada do que a expressão ‘tornar-se negro’ delimita. Apenas me pareceu incontornável consentir com essa marca identificatória”.

Podemos afirmar que esse é um acontecimento “incontornável”, pois, se reconhecer branco, negro não é um acontecimento banal. Podemos dizer, que na experiência como psicanalista é possível se reconhecer branco e que se reconhecer branco não é ser mais incolor, não é ser humano da mesma maneira, não é ignorar o discurso da raça e é um acontecimento com efeitos e consequências, inclusive na experiência clínica e analítica.

Tanto para os psicanalistas que estão vivendo a sua experiência em análise, quanto na sua posição de sustentação de desejo para experiência de seus analisandos; qual o efeito de ser reconhecer branco na sua experiência?

Em termos de uma política…

(Renata)

É fundamental afirmar que o racismo é de toda a sociedade, e que envolve cada um de nós com seu próprio gozo, em uma posição alienada ou não. Como participamos desta sociedade de um novo modo?

É preciso se implicar, a cada vez e, se perguntar quando, como psicanalistas, subvertemos a ordem social, pois, a pergunta não cabe só aos negros, cabe aos negros resistirem, cabe a nós usarmos estratégias de sobrevivência, mas, cabe-nos, também, enfrentarmos o racismo quando somos os opressores. Quando possuímos, circulamos no mundo com o corpo do mestre.

Seria o aquilombar-se uma possibilidade? Distinta do saber-se branco e mesmo do tornar-se negro?

Saber-se branco e tornar-se negro não é aquilombar-se, mas, podemos afirmar que só é possível aquilombar quando se reconhece o próprio corpo, quando o lugar de humano é reconhecido para negros e brancos, com uma responsabilização e reconhecimento do próprio corpo.

Mas, nem todos que se souberem brancos ou que se tornarem negros vão se aquilombar. Pois, não é uma proposta de um gozo único, para todos, isso não cabe à psicanalise. Como, podemos afirmar que, saber-se branco não implica sair da lógica perversa do aniquilamento do estrangeiro.

A proposta de aquilombar-se seria um novo modo de laço na cidade, que incluiria as questões da raça?

O quilombo, como vocês sabem, não foi só de negros, haviam negros, brancos, indígenas…. Aqueles que estavam decididos pela subversão da ordem mundial, melhor, da ordem universal do gozo único estabelecido pelo corpo mestre. Então, o convite para aquilombar-se, não deve ser de qualquer maneira. Talvez, para a psicanálise, seria da maneira descrita por Laurent, no texto Psicanalista Cidadão, usando à ética psicanalítica e política que nos cabe, que não é sem angustia, mas, necessária.

É preciso reconhecer a lógica de poder e de privilégio ao qual o corpo branco pertence, pois, como diz Fanon “aquele que adora o preto é tão “doente” quanto aquele que o execra” (p. 26). Assim, aquilombar-se não é adorar ou execrar é reconhecer seu próprio corpo e se perguntar sobre seu gozo, sua posição diante de uma estrutura social racista, podendo, a partir dos questionamentos sobre seu corpo, cada sujeito ocupar o seu lugar de homem com o seu gozo próprio.

(Marcus)

O sentido que estamos propondo para aquilombar-se aproxima-se, em nosso entender do que propõe Laclau e sobretudo Lacan em seu texto “O tempo lógico…”.

Os três prisioneiros “reconhecem entre si como sendo homens” (LACAN “o tempo lógico e a asserção de certeza antecipada: Um novo sofisma p. 213). O que é muito distinto de um deles se reconhecer branco em detrimento dos outros que serão os ditos negros e que associamos ao gesto do colonizador.

Não, aqui, trata-se de uma nomeação que surge a partir de uma dança, um “ballet” entre os três.

É um ballet, uma dança. Mas ao modo Pina Bausch. É uma dança porque o gozo, aqui, não é mais um furo, vazio, mas um gozo que se apresenta em um jeito de corpo. É cada um com o seu movimento, seu gozo de falante, mas que, por um segundo, pode se apresentar como coletivo. Segundo o apólogo: vejo nos outros a possibilidade de sermos humanos, iguais. Se for assim, porém, vou desaparecer na multidão de formas disformes do real. Preciso, então, me afirmar por medo de não ser humano, assim me nomeio e me excetuo, não sem os outros que comigo dançam.

Todo mundo precisa de alguns outros, mas quais são os alguns outros dessas passagens ao real?

Aqui Lacan situa uma oposição – velada, mas que destaco – entre o grupo e o alguns outros. Ele vai definir o grupo, como prévio. Tendo, porém, necessariamente, já em si as linhas de corte que introduzirão o ato de nomeação. Há, então, antes da nova nomeação, o grupo que estabelece por sua existência os possíveis e impossíveis prévios, nos quais a contingência vai instaurar uma passagem ao real, uma passagem ao impossível, um acontecimento. Esse acontecimento instaura o “alguns outros” eu diria, retroativamente. São aqueles que, agora, aparecem como os parceiros, se destacam da multidão como os companheiros dançarinos do ballet da nomeação“ (Vieira, M. A. “E de alguns outros…”).

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