Por LÍGIA CRISTINA AMORIM (BA)
Cartel: Savoir y faire – Eliana Bentes (Mais-um), Maya Rodrigues, José Ronaldo, Lígia Amorim, Guilherme Lima, Ana Carolina
Ernest Kris foi um historiador da arte que a partir do casamento com a filha de um grande amigo de Freud, iniciou seus estudos sobre a psicanálise em Viena. Posteriormente, dedicou-se a compreensão da relação entre psicanálise e criação artística.
Assim como Freud, seu mestre da psicanálise, Ernest Kris fugiu para Londres, onde se refugiou da perseguição nazista. Nesta nova morada, já com seu trabalho como psicanalista consolidado, atendeu diversos artistas. Após alguns anos, partiu para os EUA, onde passou a ministrar aulas sobre Arte e Psicanálise, chegando a publicar um livro.
A partir de questionamentos sobre a obra de Freud, Ernest Kris inaugurou e foi um dos destaques da psicologia do Ego. Utilizava um método de investigação baseado em conceitos trazidos da teoria freudiana para explicar as condições psíquicas que favoreciam o processo criativo.
Distintamente da psicanálise inaugurada por Freud – que privilegiava o inconsciente e a pulsão – a psicologia do ego centrava-se no papel do eu e na importância do ego no controle do id. Esta psicologia, ainda defendia que a análise deveria iniciar pela superfície, priorizando a resistência antes da interpretação. Segundo Ernest Kris, o ego seria o mediador entre os processos primários e secundários.
Lacan, em 1953, utilizando-se da linguística de Saussure e da antropologia estrutural de Levi-Strauss, reeditou o inconsciente freudiano como estruturado pela linguagem. Ambos, Freud e Lacan, defenderam, diferentemente da psicologia do ego, que o Eu tinha dimensões inconscientes.
Um dos destinos pulsionais citados por Freud em 1905 foi a sublimação, que poderia tanto dar um encaminhamento à pulsão, satisfazendo-a, quanto funcionar como defesa, evitando-a. Para sublimar seria preciso escapar ao recalque e ser mediada pelo eu.
Esse conceito de sublimação foi extensamente utilizado por E. Kris. Assim como Freud, ele entendia que a sublimação funcionava a partir da ação conjunta entre as diferentes exigências de satisfação do isso. Seria uma das formas de destino da pulsão. No caso dos artistas, o eu seria responsável por organizar o conteúdo inconsciente o transformando em matéria artística.
O caso do homem dos miolos frescos, descrito por E. Kris e citado por Lacan no texto A Direção do Tratamento, na obra Os Escritos (1954), relata sobre um homem jovem dotado de inteligência que chega à análise com a queixa de plagiar produções escritas alheias.
Sua primeira análise, com uma mulher, foi interrompida após a analista fazer uma interpretação precipitada na qual associava os pequenos furtos de livros e doces na infância com os então atuais roubos de ideias de trabalhos escritos de outros autores.
A segunda análise realizou-se com Ernest Kris, que nesse período já havia inaugurado a psicologia do ego. Seguindo seus métodos originais, Ernest conduziu o tratamento com foco no eu e escutou atentamente a história detalhada dos plágios relatados pelo paciente.
Um momento torna-se marcante para o paciente, quando ele se depara com uma obra de autoria desconhecida em uma livraria e prontamente atesta que subtraiu conhecimentos deste referido autor para produzir seu próprio livro. Ele é tomado por uma inibição potente que o impede mais uma vez de alavancar a sua carreira profissional e a sua análise.
Após algum tempo de investimento nesse tratamento analítico, Kris faz uma intervenção que parece julgar adequada e cuidadosa, afirmando ao seu analisando que ele “não roubava nada”, ou seja, desconsiderando o significante trazido pelo paciente através da fantasia de ser um plagiário. O paciente surpreende revelando que sempre que saia da sessão buscava nos cardápios, expostos numa rua de restaurantes próximos, o prato “miolos frescos”, degustando-os prazerosamente. Esta interpretação finalizou o tratamento, atestando uma direção incorreta que deletou o desejo do paciente.
O manejo clínico de Kris revelou sua tentativa fracassada de oferecer algo para o analisando. Ele não suportou o real revelado e acabou gatilhando o acting out.
Utilizando os conceitos trazidos por Lacan no seu último ensino, podemos dizer que esta interpretação apressada não considerou o sentido trazido pela língua do Outro, o sentido do modo singular do seu gozo. Dessa forma, a interpretação visou a substituição de sentido e não o mais-gozar. O significante primordial foi descartado, juntamente com o objeto a, resto da operação de significantização. O real foi privilegiado, e a fantasia do paciente desconsiderada.
Teria a primeira analista interpretado correlacionando a história do passado com a fantasia do presente, sintetizando em certo julgamento? Na segunda análise, com Ernest Kris, a interpretação teria sido precipitada? A verdade do sujeito teria sido minimizada pela tentativa de fortalecimento do eu do analisando por parte do analista?
Lacan elabora que a pulsão oral que se revela no objeto, miolos frescos, do caso do homem analisado por Ernest, vem no lugar do desejo que foi apagado pela interpretação do analista. A interpretação do recalque – que insistia no “eu roubo”, quando negada – “não rouba nada”, causou o acting out.
Lacan propõe uma elaboração diferente onde teria sido pensado “rouba nada”, sem o não. Dessa forma, teria sido possível derrubar a defesa e acessar o real, como trazido por Lacan no seminário XXIV. Já a interpretação do recalque (não rouba nada) não permitiu o acesso ao inconsciente e precipitou o acting out. A pulsão seria roubar as ideias e a defesa se acusar de querer roubá-las.
O trabalho de diferenciação entre desejo e pulsão foi abordado por Lacan na Direção do Tratamento. Enquanto o desejo aponta para um objeto perdido, chegando no nada, em Das Ding, a pulsão aponta para qualquer coisa. Lacan traduziu inicialmente a libido freudiana por desejo, metonímico e inapreensível. Depois deu outra tradução para a libido, que foi o gozo, imóvel e rebelde, que não se deixa significar.
Lacan atestou que a palavra é um aparelho de gozo que traduz uma mentira verdadeira. Por outro lado, o gozo não diz nada, portanto é uma verdade mentirosa. O que o paciente queria ao direcionar o ato ao analista? O não dito que se manifesta no ato denuncia seu desejo? O que estaria ele demandando ao espectador analista? Lacan afirma que o desejo desse paciente foi manifestado no resto, objeto a, dessa relação onde a verdade apresentada pelo analista acionou a revelação do ato.
Diante do exposto, podemos entender que a questão não é sobre a interpretação (que estava correta), mas como o paciente reagiu diante da revelação desta, e como, a partir desse momento, o analista conduziu o real com o qual ele se surpreendeu.
Provavelmente, utilizando os conceitos do último ensino de Lacan, a condução do tratamento do caso citado seria outra, na qual a mira seria o modo singular de gozar do paciente.