RELAÇÕES AFETIVAS E O FANTASMA DA DOR

Por Denise Henriques da Silva Abreu
Cartel: O Amor na Psicanálise – Cristina Duba (Mais-um), Ana Maria Ferreira da Silva, Denise Ávila, Denise Henriques da Silva Abreu.

Ao longo do percurso desse Cartel pude apreender várias versões do amor. E isso me incentivou a trazer para essa Jornada uma versão de um romance intrigante em um filme de ficção, fora do circuito das utópicas histórias de amor, em que me fez questionar se seria sobre uma forma de amor baseada na dor de amar ou na de amar a dor.

O filme “Trama Fantasma”, de Paul Thomas Anderson (2017), é passado na década de 50, onde a face do horror ainda estava visível por conta do fantasma da dor, da Segunda Guerra Mundial, que rondava a Europa. Encenado entorno da alta sociedade londrina que vivia de aparências com seu luxo, entre elas, a beleza dos ricos vestidos em composições precisas, impecáveis, conduziu interpretar que aqui existe uma preocupação do belo como encobridor de uma dor social.

Através da história de um romance entre um estilista de meia idade famoso, bem-sucedido, exigente, dominador, e uma mulher bela, pobre, com aparência frágil é apresentada as nuances de falsas sutilezas, a ambivalência entre a perfeição e a violência, e o amor como véu de um fantasma, de um impulso arrasador, da pulsão de morte, o que pode causar estranheza para alguns espectadores por ser difícil de aceitar que se trata de uma história de amor. Desse modo, o filme abala por manifestar um traço perverso do amor em uma envolvente e apaixonante relação.

Aponta o prazer pelo não prazer, o potencial destrutivo dos relacionamentos amorosos: a ambivalência de afetos entre amor e ódio, carinho e agressividade. O enredo propõe uma guerra progressiva e silenciosa, um ataque violento disfarçado pelos ideais de viver: a elegância dos trajes, do comportamento social. O regozijo do poder entre o casal é um imperativo que se transforma em um sadismo pela angústia do Outro, mas com toques sutis do mito grego de Psiquê (Alma humana) e Eros, o qual transmite que o amor não sobrevive sem confiança. Aborda a hipocrisia e os subentendidos da relação que vai se tornando cada vez menos saudável, expondo como um casal pode estabelecer um jogo tóxico, mas apreciado por ambos. A mulher de algum modo transmite ao homem confiança no comando desse jogo sádico de morte e salvação, que promove uma satisfação sem sentido, um gozo cortante do aniquilamento.

Aqui se apresenta um tipo de parceria fantasmática, dita por Miller em seu livro La pareja y el amor, onde “o casal parece responder a um fantasma” de um dos parceiros que tem uma função designada, dando certo sentido de completude, “mesmo que seja na dor”. É revelado a insensatez do amor, geralmente velada; a tendência sadomasoquista da relação amorosa: o prazer pela dor que o amor tenta esconder; a trama fantasma das relações afetivas como um modo particular de tentar fazer a relação sexual existir. A dissimetria entre os sexos demonstrada pelo ato mortífero indica a inexistência de uma relação total, representada pelo aforismo de Lacan: não há relação sexual.

No papel do personagem principal masculino se pode aludir a uma fixação materna, o qual é mostrado nas cenas de alucinação febril – vê a imagem (o fantasma) da mãe o observando; o seu olhar -, e mediante sua dificuldade em manter um relacionamento com outras mulheres, deixando transparecer ter sido uma consequência da ligação mãe-filho, das demandas da pulsão e do supereu, os quais, em Lacan, ordenam o gozo, fazendo-o se sentir amaldiçoado.

A sua parceira, diferentemente das outras que ele costumava se relacionar, possui uma disposição em atingir seu objetivo, conquistar esse homem, assim ela encontra numa identificação mística um meio de domá-lo, castigá-lo, envenenando-o, intoxicando-o com sua porção mágica para salvá-lo da maldição de nunca amar, da dor do medo de amar, e assim aceitá-la, não mais castrá-la, usando o tratamento da cura do envenenamento de modo afetivamente maternal. No final do filme revela um certo enigma de seu gozo – “o que quer a mulher?” (em Freud); “o mistério do corpo que fala, o mistério do inconsciente” (em Lacan): que quer um homem fraco, derrotado, impotente, meigo e dependente somente dela.

De fato, neste filme, a dor permeia todo o enredo, todos sentem dor. E no caso particular do personagem principal, ele encontra na necessidade de sentir as dores do envenenamento, em um ato suicida, uma forma de expressar seu desejo, o amor pela sua parceira: pelo Outro cruel e perverso que exige e ordena. Nesse amor sem sentido, o diretor parece expressar o funcionamento da satisfação interna da pulsão e seu produto (o gozo) do grafo do desejo de Lacan, o qual supõe ser correspondente a cadeia significante, simétrica a ela, mas só que sem sentido. (2010, Miller, Do amor à morte, p. 8)

Lacan (O seminário. Livro 20) nomeou essa dor mais além do princípio do prazer-desprazer como gozo, que tem seu percurso pulsional incentivado pelo amor, percurso que passa por uma renúncia às pulsões (até certo nível) resultando na insatisfação fundamental do desejo. Distinguiu na compulsão da repetição duas conotações: uma diz respeito à repetição do fato traumático para dominá-lo e significá-lo, e a outra decorre da fixação em um traço. E quando se ultrapassa o limiar da dor, chega-se ao gozo da dor no corpo, na carne mortificada.

Sobre o amor, Miller diz em seu texto Uma conversa sobre o amor,

“[…] que no amor há um engano (tese bem conhecida), porque se esconde o objeto a como dejeto. E Lacan fornece a fórmula desse véu quando escreve: i(a), imagem de a. Uma imagem que precisamente esconde, que outorga todo o esplendor do imaginário, da beleza ao que, em si mesmo, não tem nada de lindo […].” (p. 6)

Vela o horror de um prazer cruel, um prazer em colocar em risco a vida, um não prazer pela vida. E acrescenta que:

“[…] se há uma perversão fundamental da sexualidade masculina, talvez seja porque A mulher não existe, e, portanto, é preciso fazê-la existir mediante traços que não são o traço puro, o significante puro da feminilidade. Assim, os traços de perversão são os traços inventados no lugar significante de A mulher, que não existe.” (idem, p. 12)

Na frase de Lacan “Só o amor pode fazer o gozo condescender ao desejo”, remete que o gozo e o amor são rivais – conflito vivido pelo sujeito o qual desperta a perversão -, contudo mostra que nesta guerra o amor pode vencer e fazer com que o gozo renuncie à sua superioridade.

É essa relação que o trabalho da Psicanálise tenta atingir. De que não se caia na tentação da paixão pela dor de amar ou de amar a dor, e sim, de separar o sujeito desse Outro perverso a fim de apaziguar o sofrimento que existe no amor primordial, permitindo abrir um caminho para um diferente amor passar, sem os espinhos da necessidade da dor.


Referências bibliográficas:
LACAN, J. (1972 – 1973) O seminário, livro 20: Mais, ainda. Trad. M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, Ed., 1985.
MILLER, J.-A. Do amor à morte. In: Opção lacaniana online nova série, Ano 1, n° 2, julho de 2010, pp. 8.
MILLER, J.-A. La pareja y el amor: Conversaciones Clínicas con Jacques-Alain em Barcelona/Jacques Alain-Miller…[et. al.] – 1ª ed. – Buenos Aires: Paidós, 2003, p. 19.
MILLER, J.-A. Uma conversa sobre o amor. In: Opção lacaniana online nova série, Ano 1, n° 2, julho de 2010, pp. 6 e 12.

 Para acrescentar, trago as elucidativas colocações que a mais-Um ad hoc, Isabel Lins, apresentou após a leitura do texto acima na Jornada de Cartéis da Seção Rio de Janeiro da EBP de 2022, que me fizeram refletir mais sobre o assunto abordado, as quais exponho aqui:

(O filme trata de uma relação) “entre um homem rico e uma mulher pobre, cujo enlace se estabelece na dor, traço perverso do amor que os unes no jogo pulsional bem ao gosto dos dois. Daí tira uma satisfação que a gente pode chamar, já, de sadomasoquista adoentado como completude da relação sexual que não existe.”

“Miller em 1999 põe em evidencia a mulher pobre, e Lacan chama essa mulher de “mulher por excelência”. Todos os dois se baseiam em Leon Bloy que escreveu um livro sobre a mulher pobre. Pobreza marca a falta intrínseca ao feminino, mas essas insígnias podem, numa inversão dialética, tornarem-se fascinantes, enquanto os excessos podem resultar de uma ilegitimidade feminina. Isso está dito por Danuza numa tese de mestrado defendida na UFF.”

Isabel Lins também destaca dois trechos da minha escrita no penúltimo parágrafo – onde me refiro sobre a rivalidade entre gozo e amor, e sobre a superioridade do gozo frente ao amor -, e pergunta:

“O que seria essa rivalidade (entre o gozo e o amor)? Será que são coisas que a gente pode medir? Tem alguma escala para medir e denominar assim: superioridade, rivalidade?”

Em seguida comenta sobre o último parágrafo e questiona: “Como manejar a transferência de maneira a proporcionar essa perda, esse esvaziamento de um gozo mortífero, para que o sujeito possa ascender a seu desejo e ao amor, e ao mais-de-gozar? Não uma renúncia total do gozo, mas de transformar esse gozo mortífero no mais-de-gozar.”

Referindo-se a outro trecho do texto, Isabel Lins interroga:

“Será que essa mulher como tal se sentia amada? Ou, ela fazia essa parceria desse amor por esse homem dessa forma sadomasoquista, quer dizer, participava do mesmo gozo dele?”

Por último, cita um trecho do artigo de Miller Do amor à morte (publicado na Opção Lacaniana on-line) o qual diz: “há uma certa condição do amor, que a mulher não seja toda para o sujeito porque, só assim, ela pode ser reconhecida como mulher”. E indaga: “Essa personagem da mulher do filme, onde podemos situá-la? Ela se quereria toda, ela se quereria A mulher?”

Todas essas questões muito contribuíram o tema por mim apresentado, servindo de acréscimos, sem nunca esgotar.

Agradeço as provocações de Isabel Lins e a equipe da Jornada de Cartéis pela oportunidade proporcionada.

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