“O ‘Bad Boy’ das agulhas”

Por Maria Lidia Alencar

Cartel: Criação e Invenção na Polis – Christiane Zeitoune (Mais-um), Maria Lidia Alencar, Breno Homsi, Cyntia Mattar

Minha reflexão, nesse momento do trabalho de cartel, é sobre a sublimação como versão de Pai. Nem sempre criar – o ato de criar – possibilita a um sujeito se situar no campo do Outro, forjando um laço a partir do qual possa evitar o pior, em termos do gozo, em seu percurso de vida. Há sujeitos que tentam uma vida inteira se agarrar, se arrimar através de atos criadores, na literatura, na pintura, na música, e, sem parar de tentar, buscam se ver a partir disso, situar-se a partir desses restos, recolher sua própria imagem como efeito desses gestos. Alguns conseguem, outros dão testemunho de desfechos trágicos, como o que vou tratar aqui. Vou comentar a trajetória de Alexander Mcqueen, estilista londrino, que foi tema de um de nossos encontros dentro do Seminário, ali trazido a propósito de sua linha de ação crítica e mordaz, inventivo, genial e à frente de seu tempo, desvelando com sua obra o cerne do Discurso Capitalista, como proposto por Lacan. O artista, já sabemos, se antecipa….

Dizia ele: não faço moda, faço arte! E percorria, com seus espetaculares desfiles, a sequência escandalosa indo do luxo ao lixo, em pleno palco dos desfiles que ‘encenava’. O que me impactou no relato foi a maneira como desde cedo, rabiscando aos 3 anos um vestido feminino na parede de sua casa, dava sinais de que algo da forma, da invenção das formas, o levaria a deixar seu traço pelo mundo. Cedo começou a costurar para as irmãs e a trabalhar nas melhores casas de alfaiates de Londres, se indignando com as limitações das regras, dissecando seus estilos, devorando informações, passando ao campo do figurino teatral na montagem de Os Miseráveis, absorvendo a lógica dos palcos e das cenas teatrais, chegando ao ápice de ser assistente de grandes estilistas, Givenchi, e seu mito Galleano. Seu modo de trabalhar, rebelde, sempre desafiando os limites e quebrando protocolos, l’enfant terrible’, como foi chamado, rasgava tudo que lhe chegava pra dar sequência e re-inventava as peças deixando a todos sem ação ou reação. O que brotava de seus atos era ousado, inovador, inesperado, indigesto mesmo, ao ponto de nos dar a sensação de que cortar e recosturar tudo de outro modo era mais que rebeldia, era a tentativa de cavar um lugar inédito no Outro, de onde pudesse ser visado a partir daqueles dejetos postos no palco.

Sabemos que a criação nem sempre garante ao sujeito um enganchamento no Outro, pode-se vagar, em busca, por muito tempo, sem costurar um semblante possível, que garanta ver-se reiterado pela obra. Mas a tentativa me parece sempre essa, alinhavar, entre a obra e o olhar, retificado pelo público, um semblante para localizar o sujeito.

Em tempos do ‘Outro que não existe’, as soluções recolhidas no ato de criação e no da invenção se avizinham. Justamente porque, o Outro não existindo, sobra ao falasser ter que inventar uma saída, uma solução inédita até para o que parecia estar ancorado no discurso. Segundo Miller, na invenção trata-se de bricolagem, de criar a partir de materiais existentes e operar a amarração dos órgãos ao corpo, operação que só é possível ao se estabelecer uma passagem inédita, já definida por Freud, no caso da esquizofrenia, em que a representação de coisa e a representação de palavra transitam de função, entre si.

Estamos, aqui, fora de discurso.

Entretanto, há uma vizinhança, para Miller, uma proximidade semântica, entre Criação e Invenção. Esse Outro que não existe é inventado, diz ele, e por isso a ênfase se desloca para o saber–fazer, para o uso.i

Disso, que as aproxima, creio poder extrair algo do gesto de Mcqueen, de tomar os dejetos como via para re-editar a criação e o estilo, esfregando o lixo, a desconstrução, os restos que caem do universo tirânico da moda em nossos olhos, usando o escândalo como linguagem, o sangue, a morte, os corpos nús, o crime, enfim, deixar a plateia estupefata, isso era a visada desse ‘bad boy’ das agulhas, que não admitia que alguém se levantasse da plateia com o conforto de quem digeriu um bom banquete de domingo. Assim, passou pela cena da moda inglesa e mundial, atravessou semblantes, se consagrou sem crer no engano das imagens e da fama, e se suicidou, saindo de cena espetacularmente.


Referências Bibliográficas:
Freud, S. – O Inconsciente, Apêndice C, 1915.
Lacan, J. – O Seminário, livro III, As Psicoses, 1955/56.
Miller, JAM – A Invenção Psicótica, 2003, Opção Lacaniana nº 36.
_________.  – A Salvação pelos Dejetos, 2010, Mental nº 24.

i “O Outro não existe quer dizer que o sujeito está condicionado aa se tornar um inventor. Ele é particularmente levado a instrumentalizar a linguagem,”, Miller, JAM, A invenção psicótica, 2003, Op. Lacaniana, nº 3.
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