Por Miguel Lacerda Neto
Cartel: “Desejo do Analista” – Maria Inês Lamy (mais-um), Guilherme Scheidemantel, Larissa Martha, Maria Luiza Rovaris Cidade, Miguel de Sousa Lacerda Neto
Ando emaranhado a questões da clínica e do hoje. Não me atrevo decantar nenhuma verdade universal ou elaboração com semblância de conclusão. Minhas andanças e os terrenos do cartel não me levaram ao solo infértil das certezas. Assim, não foi possível a tal ponto trazer quaisquer ideias fixas, pois como dizia Machado de Assis “Não me ocorre nada que seja assaz fixo nesse mundo[2]”. No entanto, estou aqui para algo enunciar. Dizer, seria a melhor colocação. Digo de uma redução, não confundam com uma síntese! Exponho, desse modo, algo como o que a filosofia de Souriau[3] buscava ao encontrar as singularidades do existir em Les Difféerents modes d’existence. Assim, essa redução seria a medida que revela o ponto de vista de um modo de existir.
O que busco reduzir é mais do que as leituras e conversas que tivemos nos últimos anos como cartelizantes, mas, sim, o trabalho que se dá ao encontrarmos aquilo que nos desencontra ao pesquisar. Digo de um pesquisar-se. A perturbação que desloca um cartelizante para, mais do que elaborar e responder uma questão, compreender o próprio questionamento. Assim chego ao que foi o meu trabalho no cartel e a inquietante questão do que é isso que podemos chamar de Função de Analista. Sim, pois, se por um lado o cartel foi além de suas operações enquanto dispositivo fundamental à psicanálise – foi meu primeiro contato com a Escola Brasileira de Psicanálise. Por outro, o cartel foi solo por onde pude autorizar-me a indagar a que psicanálise hoje me conecto.
Digo das nuances da Função na clínica, mas também de como a psicanálise tem sido convocada a dizer sobre o hoje e sua Função no que o Ailton Krenak[4] chamou de “fim do mundo”. E se o dizer, ou melhor, o bem dizer ocupa um distinto lugar na ética psicanalítica, parece importante nos tempos atuais que se possa ao menos ouvir quando nos é solicitado que se diga. Então, já apresento de que psicanálise quero dizer. Como Romildo Barros já havia sinalizado sobre a crítica lacaniana ao standard, “teremos que explicitar nossos princípios” (Barros, 2003). Portanto, afirmo da escuta enquanto resposta em tempos disruptivos e da psicanálise que tira seus sapatos por não ser eles que definem o valor de suas passadas.
Podemos assim pensar Função enquanto conceito clínico, mas também ao modo como o qual a psicanalise responde a sua época. Assim mesmo, ao mesmo tempo e sem nenhuma divisão entre os mesmos. Portanto, para falar de Função precisamos falar de princípio enquanto início, do analista que opera a Função; e de princípio enquanto causa, ou como a psicanálise se debruça em um tempo e espaço.
Quanto ao analista, não o sujeito que se autoriza, e sim a presença que se percebe em ato analítico, este somente surge se há análise. E não podemos dizer da existência da análise sem a transferência e o Desejo de Analista. Talvez, podemos dizer que a transferência é um movimento duplo: do analisante o que se coloca em questão é o sujeito suposto saber, que surge do encontro daquele que requer uma análise e do psicanalista que se coloca em jogo. E do psicanalista – e aqui o difiro do analista para melhor compreendermos a Função – o movimento vem em relação ao desejo. Como afirma Lacan no seminário 8, o psicanalista é “possuído por um desejo mais forte que os desejos que poderiam estar em causa, a saber, de chegar às vias de fato com seu paciente, de tomá-lo nos braços ou atirá-lo pela janela” (LACAN, 1960/1962, p.233).
Em primeiro, é preciso compreender que o analista é essa outra existência que habita uma análise e só pode ser percebido em ato e a posteriori. Como em um texto, o autor não é o escritor, ainda que tenha sido criado por este quando aceita colocar-se em jogo numa escrita[5]. O analista é, desse modo, descontínuo e da ordem de um fenômeno. O que permite a criação do analista é o desejo “mais forte” que emerge quando o psicanalista empresta corpo à situação analítica. Cabe ressaltar que não se trata de uma posição neutra, já que mesmo sendo de uma outra ordem existencial é ainda o psicanalista quem responde à posição do analista em uma análise. Assim, como o autor que habita a obra, mas esta é assinada pelo escritor que ao escrevê-la revela a existência do autor. Talvez esse jogo existencial surja exatamente na diferença dos elementos e suas posições no discurso. De tal modo, o Desejo de Analista principia uma análise e também funda o analista. Portanto, o próprio analista é uma função de si mesmo, já que somente a partir do Desejo de Analista há analista e o analista é causa de desejo. Não há Função de Analista sem que haja o próprio analista enquanto função. Assim encontramos o andar superior de Miller (2017, p.8) no grafo da diferenciação entre análise e psicoterapia.
O Desejo de Analista está para a análise em um movimento constante em direção à Função. Ou seja, é pelo desejo que o fenômeno Analista pode, ainda que descontinuamente, se sustentar. Igualmente, podemos colocar que a Função de Analista é sobreviver para que haja, desse modo, análise. E ao indagarmos ao que precisa a Função Analista sobreviver encontramos a resistência. Se para Lacan a obviedade da resistência por parte do analisando o faz colocar que “não há outra resistência à análise senão a do próprio analista” (LACAN,1998, P. 601) o que pode ser pontuado é que a Função Analista resiste no próprio desejo de analisar. Dessa forma, encontramos a questão: a que serve o Analista se não à análise e, por assim dizer, ao ato? Talvez precise de um outro cartel para pensar o ato e sua relação ética e estética, como também política. Portanto, a Função de Analista não se trata de uma técnica, mas um seguimento do Desejo de Analista que ao possibilitar a analise cria este que é e está em função do próprio ato analítico.
No entanto fiquei inquieto com a Função em um outro modo. Até aqui coloquei o princípio ao pensar o início (da análise, do analista, da função) enquanto fenômeno clínico, mas também nos vale o princípio ao pensarmos enquanto causa. Se o desejo opera o analista enquanto função, a partir do psicanalista que se põe em jogo, quais são os riscos que fazem parte da função de quem faz da psicanálise enunciado em uma sociedade? Aqui a questão se mistura na possibilidade de não nos escondermos daquilo que podemos chamar de saber psicanalítico. Falar em Função, neste modo, é dizer da responsabilidade de quem agencia tal saber. Saber esse que tem um material específico: o sem sentido, o que resta, o sem uso ou que tem seu uso em manter-se inútil. Miller advertiu sobre esse material quando afirmou que “a análise encontra seu bem nas lixeiras da lógica. Ou, ainda, a análise desencadeia o que a lógica domestica.” (MILLER, 1996, p. 62). Foi justamente por esse convite que Lélia Gonzalez[6], mais tarde, vai poder afirmar quais elementos do racismo e do sexismo somente pode a psicanálise dizer. Talvez denunciar. Quem sabe ouvir, já que a autora enuncia que “o lixo vai falar, e numa boa”.
Sobre essa Função, talvez, posição da psicanálise em seu tempo possuo indicações. Como a constatação de Lacan ao dizer que “deve renunciar à prática da psicanálise todo analista que não conseguir alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época”(LACAN, 1998, p. 321). Em nosso último encontro no cartel saio com perguntas e a indicação de continuar a pesquisa pensando a psicanalise como intensão e extensão. É verdade que não se faz clínica apartada de sua época, mas qual a Função da psicanálise em nosso tempo? Sem resposta fico com a pergunta: se a “Lata de lixo vai falar” qual a Função da psicanálise a essa inevitável escuta?