Por Gisela Goldwasser
Cartel: Os objetos voz e olhar – Heloisa Caldas (mais-um), Fanny Cytryn, Denise Henriques, Cecília Castro, Marcia Crivorot, Gisela Goldwasser
A reunião do cartel sobre o tema do dizer e da voz é feita durante a pandemia e realizada on-line. Algumas vezes tivemos problemas em conjugar imagem e voz: outras vezes uma pessoa não aparecia, mas falava ou não aparecia e não falava; para ouvirmos quem falava era necessário calar o microfone para diminuir a interferência. Independente disso, antes mesmo da pandemia, nos encontros ao vivo sempre haverá algo que não se consegue dizer.
Recordo os sobreviventes de guerra que desenham, sussurram um barulho lembrado, arriscam uma narrativa. A narrativa sempre terá uma invenção. É preciso a invenção como véu para fazer face ao horror.
Poderíamos cair na armadilha e pensar ingenuamente em algo mais fidedigno ao emissor na forma da escrita. Ledo engano; quem dá a voz é o leitor.
Não dá para falar tudo. Isso pode incomodar. Mas dá para falar alguma coisa.
Na descrição do passe de Rômulo Ferreira da Silva em “O objeto voz na experiência de uma análise” e de Marcus André em “Silêncio” (isso não é um silêncio); a dificuldade de entender o que o analista pronunciou e a oportunidade de invenção de uma palavra em análise dão a reposta possível diante da voz ou da falta dela.
Demorei para chegar à minha questão. Não tinha questão até Denise sugerir as conferências sobre o supereu de Romildo do Rêgo Barros. Cheguei a voz que invade nesse sexto, sétimo texto que líamos. Já queria investigar o mal estar vindo do objeto voz, da voz feroz do supereu.
A voz pode dar mal estar. Mal estar é mal da condição humana. Veio uma citação do texto da própria Heloisa Caldas quando se debruçou sobre o mal estar de Saramago em “O Olhar e a voz em O ensaio sobre a Cegueira”: Como mostra Lacan (1968-2008, p. 248), a voz é o objeto a, implicado no circuito pulsional que envolve a dor. Ela não permite que se esqueça o mal da condição humana, um horror difícil de assumir. Por isso, ela não permite dormir e sonhar; ela promove um despertar.
Num tempo da obsessão por perfeição, os filtros dos celulares corrigem qualquer ruga, como seria admitir esse mal estar como condição humana numa Sociedade que não permite ficar sem soluções, no vazio? Mas tivemos o sociólogo Domenico de Masi estourado com o vazio necessário para seu “Ócio Criativo”. Um ócio criativo demanda criar, produção? Lembrei da pergunta de Marcus André Vieira, no seminário no youtube sobre Cartel e Guerra onde coloca como pergunta diante da ausência de voz superior no Cartel, mas a necessidade de se produzir algo no fim do encontro; pode ser a voz feroz do Supereu do Capitalismo que precisa da produção?
Pedi dicas de leitura sobre esse mal estar da voz feroz e Heloisa, nossa mais um, me indicou textos sobre supereu, devastação, melancolia e sublimação.
Ilka Franco Ferrari em “Melancolia e modo de funcionamento dos melancólicos” destaca Lacan: Para ele, atacar o próprio corpo é uma tentativa, ainda que fracassada, que o melancólico encontra para fazer a extração do objeto a, objeto ao qual se encontra identificado em sua condição de objeto dejeto, ou seja, sem a mediação da significação fálica.
O objeto a, nesse caso, não se faz presente como causa de desejo, mas, como ressalta Lacan (1962-1963/2005), como objeto causa de tormentos. Nesse momento, o melancólico se coloca como dejeto do Outro, entregue às ações do supereu, o que o faz submergir em uma dor muito intensa.
No budismo, para que ela cesse, é necessário apagar o desejo de objetos do mundo… Mas, nesse ponto, a psicanálise toma rumo distinto: a saída da dor de existir não está na abolição do desejo, já que isso leva mesmo é ao culto da pulsão de morte, e os melancólicos ensinam sobre, já que no apagamento do desejo, têm a morte como tema frequente. Para a psicanálise, a saída se encontra no desejo de saber. (Quinet, 2006)
Cada qual tem que inventar recursos, solução particular para lidar com a satisfação mortífera da pulsão.
Em “Melancolia e sublimação – um corpo que cai”, Heloisa Caldas menciona: diferentemente do luto, na melancolia, em que a voz do supereu tem um papel relevante, para que o objeto caia é preciso que o melancólico atravesse sua própria imagem narcisista, i(a), para nela atingir o objeto a. Essa queda do objeto, encapado pelo narcisismo, o arrasta para a precipitação suicida. Nesse sentido vemos como pode ser relevante a extração do objeto, sua separação do corpo, o que parece ser alcançado pela arte, para que o sujeito e o Outro se salvem pelos dejetos.
Não parece ser por acaso que sublimação e melancolia andam frequentemente juntas em biografias e histórias sobre a vida dos artistas. O melancólico parece ensinar, com a sublimação, como opera sua extração do objeto, no ponto em que para ele o luto comum do neurótico não funciona, e com isso consegue evitar, na medida do possível, o suicídio. Para esses artistas sublimar não se trata de opção, mas de escolha forçada.
Diante de uma doença que mostra sua voz feroz em seiscentos mil corpos até começo de outubro de 2021, me pergunto: o que fazer diante dessa voz feroz que devasta: essa de quem se julga acima do bem e do mal e nega a vacina submetendo os corpos do país ao seu julgamento; essa de quem não sabe o que fazer e se submete a esse comando porque votou nele; essa de quem sabe que pode morrer e fazer outros morrerem, mas não suporta ficar trancado em casa; essa de quem para não perder o emprego no plano de saúde topa o risco de medicar com um kit que vai eliminar vidas.
Ainda pouco se sabe como conter essa voz avassaladora, mas algo da sublimação da arte conteve essa pulsão de morte. Um dos primeiros sinais de vida numa Veneza devastada pela COVID foi uma pessoa abrindo sua janela e entoando a voz de sua sacada. Uma voz que animava as águas paradas de ninguém navegar. Ainda era possível cantar. Só os vivos se emocionam. Por uns minutos viver era poder ainda cantar. Cantar não paga conta nem salva alguém da morte, mas faz alguma diferença. Cantar não resolve enigmas da ciência nem da religião. Mas naquelas águas paradas de Veneza, fez alguma diferença no mundo dos que abriram a janela tão fechada diante da COVID. A Psicanálise se interessa por essa diferença. Eu também.