A VOZ HUMANA

Por Marcia Crivorot
Cartel: Os objetos voz e olhar – Heloisa Caldas (mais-um), Fanny Cytryn, Denise Henriques, Cecília Castro, Marcia Crivorot, Gisela Goldwasser

Penso ser muito interessante e, a meu ver, prazeroso, pois leve, podermos refletir sobre alguns difíceis conceitos da psicanálise lacaniana, bordeando-os com os acréscimos vindos da Arte, no caso mais especificamente, a Arte do cinema. Mas não o contrário, ou seja, a Arte é precursora. É grotesco colocar a Arte no divã. Esta introdução, portanto, sublinha a minha intenção de apreender uma escuta do objeto Voz, no filme “A Voz Humana”.

Estudar o objeto Voz no cartel foi uma trajetória com textos e casos clínicos bem ricos sobre o assunto, acompanhados de criativos apontamentos, associações e reflexões. Reverenciando o dispositivo do Cartel, o texto, o tema, as questões impuseram-se transferencialmente pelo bom funcionamento do nosso escolhido mais um, Heloisa Caldas, que soube bem conduzir os cortes nas identificações imaginárias e paralisantes, pertinentes aos grupos de estudos.  Também fico grata à riqueza do acolhimento de cada Voz dos sujeitos integrantes deste amável e produtivo cartel.

Nos encontros de nossos estudos, recolhi como bem destacado ou sublinhado que Lacan, acrescentando os objetos Voz e Olhar na teoria freudiana, reitera sua leitura de Freud diferenciada dos neofreudianos. Constrói uma outra trajetória e apontamentos. Abandona a leitura de um percurso cronológico, desenvolvimentista e promove lugares pelo jogo da linguagem. Lacan lendo o Inconsciente pesquisado e demonstrável em Freud, nos apresenta que o Inconsciente se estrutura como uma Linguagem.

Enquanto os objetos oral e anal dimensiona a DEMANDA do sujeito ao Outro; o Olhar e a Voz, referem-se a demanda do Outro ao Sujeito. O objeto Voz ressalta sua função invocante do Sujeito dividido, assim como os seus efeitos de ressonância no corpo.

O conceito de objetos, tão participantes na clínica da psicanálise, não é de fácil compreensão, tanto quanto é imprescindível ressoá-los, destacá-los e testemunhar sua presença-ausente na escuta de nossos analisandos. Este trabalho trata-se da minha insistência em reencontrar o objeto, demonstrável apenas em ausência, em queda e em vazio. Um exercício da prática desta sutil escuta.

Foi desde este “tom”, que escutei a Voz, enquanto objeto, no último filme/curta de Almodóvar. Realizado durante a pandemia, em 2020. Curiosamente intitula-se “A Voz Humana”, uma adaptação contemporânea da peça de Jean Cocteau, de 1928. É sua primeira obra produzida pós confinamento, causada pelo desejo de liberdade de criação deste genial diretor, Almodóvar. Um curta de duração de trinta minutos, em formato de um monólogo protagonizado pela charmosa atriz britânica Tilda Swinton, lançado no Festival Internacional de Cinema de Veneza.

É a primeira vez que Almodóvar faz um filme em outra língua, que não a sua, o espanhol. Realizado, completamente no inglês da protagonista juntamente com um cachorro que certamente atua em outra língua. Os dois que encontram-se em estado de abandono: o cachorro pelo seu dono e a mulher pelo seu amante, com quem viveu 4 anos e que despede-se por telefone. Nas cenas da trama estes dois personagens comunicam-se corporalmente com fortes e desesperadas fragilidades.

Porque Almodóvar escolhe “dar voz a outro idioma” na Voz Humana? Conta-nos o diretor em entrevista, que esta outra língua trouxe-lhe uma experiência de liberdade: “me senti livre para não falar na minha língua, e sim em língua estrangeira.” Já a atriz, Tilda definiu a sua surpresa em trabalhar com Almodóvar, como um “novo amor”, disse ela: “não falo espanhol. Compartilhamos outra língua, nem o espanhol, nem o inglês mas a Linguagem do cinema.” Novamente se ressalta a VOZ humana, que leva algo a mais, testemunhados aqui com liberdade e amor, além dos significados e sentidos.

Pertinente às associações das anotações de meus estudos em cartel: A Voz como Objeto a, La langue, ressoando no corpo o enigma do desejo enquanto vindo do Outro, o que se impõe ao Sujeito como advindo do Outro.

O filme tem uma abertura, que nos equivoca: A excelente e singular atriz veste um vestido do tempo da peça de Jean Cocteau que, de vermelho sangue transforma-se em preto, será da loucura ao luto? Mais uma vez, a Voz neste entre transito de afetos inaudíveis, ressoa silenciosa e corporal.  A cena se passa em um galpão de teatro contemporâneo.  Assistimos a preliminar do filme ainda a começar, com um certo estranhamento como que estivéssemos sendo comunicados que há uma camada por baixo da trama que assistiremos e que expõe a voz do próprio Almodóvar.

Nos últimos anos, o mestre espanhol reavalia, intimamente, sua obra, como testemunhamos em seu filme “Dor e Glória”, 2019.  Este curta é parte inconfundível deste seu processo. Filma Swinton em um galpão, sem se preocupar em esconder a artificialidade do cenário que assistiremos em seguida. Almodóvar expõe as estruturas por trás de seus cenários mais icônicos. O apartamento onde o monólogo ao telefone acontece é um ambiente tipicamente “almodovarianio”, cores primárias distribuídas em formas geométricas e peças de arte simbólicas penduradas pelas paredes. Do Ato à trama e vice versa, intercambia os dois distintos ambientes nos sublinhando que assistimos apenas um filme, mas o dentro e fora deste, tornam-se contínuos:  o artista e sua obra. Realiza na Arte construções, destruições sem excluir a exposição dos restos: estranheza e semblante.

No ato final a liberação da angustiada protagonista, mergulhada em sua loucura e intensas emoções de desespero, queimando tudo: o incendiar. Agudamente ciente da artificialidade do imaginário contido nesta trama-drama teatral, o diretor faz passar a versão do impossível ao possível.  A Voz suplicante, endereçada ao amante e sua presença, vai se transformando em um dialeto próprio, LaLangue. O incêndio teatral queima e faz transformar-se em cinzas outra cena que deve ser apreciada aos olhos do amante, mesmo que não faça a menor ideia onde este se encontra. A Voz em pura angustia torna-se objeto que cai e a personagem comenta: preciso parar de falar e dar um corte nesta ligação.

Logo em seguida entra um bombeiro que a salva pergunta se ela está bem ao que ela responde: “Estou ótima”, pega o cachorro se dirige para fora do cenário do apartamento entre paredes e estruturas, que o incêndio transformou em pó, e se salva.  Se apropria da coleira do cachorro indo para o exterior bem iluminado pelo dia e diz:

“Você vai precisar a se acostumar comigo, a partir de agora sou sua nova dona.”

FIM


BIBLIOGRAFIA:
Weill, Alain Didier ( 1997), “ Os Três Tempos da Lei”, 2ª edição traduzida, Jorge Zahar LTDA, R.J. Brasil
Miller, J-A  (julho 2013), “Jacques Lacan e a voz”, In: Opção Lacaniana, # 11,ano 4
Dos Santos, Viviane Espírito Santo Tese de Doutorado em Psicanálise na Pesquisa e Clinica da Universidade UERJ, orientada por Caldas, Heloísa (dezembro 2018) in Psicanálise & Barroco, revista / V.16 n 02/
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