Por Maria Inês Lamy
Agradeço a Ana Tereza e ao Conselho da EBP-Rio pelo convite para participar do Seminário de Orientação Lacaniana para discutir os capítulos XXII (‘De que falamos?’) e XXIII (‘A referência vazia’) do Seminário “Causa e consentimento”[1] (1987-88), que trazem questões importantes, complexas e atuais.
J-A. Miller, nesses dois capítulos, tira consequências (radicais) da teoria do significante. Para a linguística estrutural o referente é perdido e a significação se dá pela articulação entre os significantes. Nessa perspectiva, Miller retorna à definição de signo – ‘aquilo que representa alguma coisa para alguém’ – e a relê como ‘aquilo que representa o nada para alguém’.
As ideias, discutidas por Miller nesses capítulos, são fundamentais para a experiência psicanalítica. A escuta em análise levará à verdade mentirosa, às ficções que cada um construiu. Essa concepção condiz ainda com a afirmação de Lacan, no final do Seminário 11, de que o desejo do analisa “é um desejo de obter a diferença absoluta, aquela que intervém quando, confrontado com o significante primordial, o sujeito vem, pela primeira vez, se assujeitar a ele.”[2]
Miller conclui, com Lacan, que todo mundo delira[3]. Uma vez que a referência é vazia, cabe aos humanos inventarem uma significação. A concepção do delírio para todos é consequência da ideia da forclusão generalizada e inclui tanto a fantasia do neurótico quanto o delírio psicótico. Além da verdade mentirosa das ficções de cada um, na neurose também surgem delírios, geralmente compartilhados: dogmas das religiões, algumas ideologias políticas ou, o que é comum entre as crianças, a crença na existência de pênis na mulher. Na psicose, os delírios são absolutamente singulares e não partilháveis.
As ideias apresentadas por Miller nesses dois capítulos são de suma importância, não só para a experiência analítica, mas também para pensar os dias de hoje. Revelam-se às vezes tragicamente atuais. Nesses tempos de abalo da função paterna, em que a fluidez dos semblantes impera, pode acontecer um deslizamento metonímico incessante das verdades mentirosas, sem ponto de basta.
E aí cabe a questão: qual o lastro da fala de cada um?
Para tentar discutir esse ponto, vai ser preciso incluir, nessa conversa, o conceito de gozo, que é o que traz peso (lastro?) à leveza evanescente do mundo dos significantes. Parece ser esse o caminho que levou Lacan à teoria do sinthoma, que tenta circunscrever o gozo ineliminável que se mantém no final da análise. A pergunta agora sofre uma torção: como o gozo, que será reduzido e localizado no sinthoma, se relaciona ao vazio da referência?
Diz Lacan, em “Joyce o sintoma”[4]: “o homem…vive do ser (=esvazia o ser) [em francês “il vit de l’être (=il vide l’être)”] enquanto tem…seu corpo: só o tem, aliás, a partir disso. Daí minha expressão falasser (=parlêtre) que virá substituir o inconsciente de Freud… o inconsciente é um saber enquanto falado… A fala define-se aí por ser o lugar em que o ser tem um sentido.” Ou seja, o ser de gozo só vai ter sentido pela fala. Interessante a leitura que Angela Pequeno faz dessa frase de Lacan: “O sujeito vive do ser, à condição de esvaziá-lo.”[5]
Esse percurso nos conduz a tentar articular as duas vertentes que regem a direção do tratamento e que levam ao final da análise: a travessia da fantasia e a identificação ao sinthoma. Na travessia da fantasia, localiza-se o objeto e se deduz seu vazio, o que pode ser relacionado ao vazio da referência. Esse movimento abre a possibilidade de se suportar o lugar de objeto, ou mesmo gozar disso, mas agora como semblante. Há também uma queda do Outro, o que franqueia a satisfação da pulsão sem a submissão a uma suposta demanda do Outro. Sendo a satisfação completa impossível, não há como satisfazer o Outro que, afinal, não existe, o que abre o caminho para a satisfação possível. Nessa linha, há uma localização do gozo que não se elimina, num sinthoma, quarto elo que garante o enlaçamento do nó como marca do sujeito.
Uma nova questão se impõe: se o final de análise permite o acesso à pulsão livre da demanda do Outro, como não se ter uma saída cínica? Nesse ponto, o vazio da referência (que, mais tarde, será definido como ‘não há relação sexual’), assume um valor primordial, garantindo a conexão com a impossibilidade de satisfação e com o desejo causado pelo objeto perdido.
Podemos pensar que a invenção depende das duas vertentes: do vazio da referência e do gozo. Só assim pode surgir uma invenção com valor de sinthoma.
No final da análise é preciso assumir, aceitar, ou consentir (para usar o termo trazido por Miller nesse seminário) com uma identificação com o sinthoma, que aponta às vezes para o gozo mais estranho a cada um, ou melhor, êxtimo. É esse movimento que evitaria a segregação.
Vimos que, em “Causa e consentimento”, Miller desloca a definição de signo, que passa de ‘o signo representa algo para alguém’ para ‘o signo representa o vazio para alguém’. Já no Seminário 20, Lacan dá mais uma volta quando subverte o famoso dito ‘onde tem fumaça tem fogo’, transformando-o em ‘onde tem fumaça tem fumante’[6]. Ou seja, a fumaça passa a ser o signo da presença de um sujeito que goza.
Interessante encontrar em Freud ideias que tratam da anterioridade lógica do gozo por relação à fantasia. Na Carta 61, diz ele que a fantasia seria uma estrutura protetora, “sublimação dos fatos”[7], que surge a partir do gozo auto-erótico. Na cena da fantasia, na Outra cena, constrói-se a relação de um sujeito com o Outro e há a localização em um objeto. Mais tarde, Freud[8] frisa o estranhamento na relação com o corpo que goza, e propõe que a fantasia de sedução seria uma tela para o gozo auto-erótico que o sujeito teria experimentado. Podemos, pois, pensar a fantasia de sedução como um véu diante do gozo obscuro, opaco, que emerge. Atribuindo ao Outro a responsabilidade pelo gozo, a criança tenta recobrir com uma fantasia o estranhamento vivido no corpo. E aí surgiriam todas as outras ficções que comporão a verdade mentirosa do sujeito.
Qual o lastro da fala? Seria o corpo que goza?
Eric Laurent traz uma boa indicação quando sinaliza que é preciso que não haja a prevalência de um dos registros para que os três possam se articular.[9]
Retornando à ideia da invenção como o enlaçamento do vazio da referência com o gozo do sinthoma, talvez pudéssemos acrescentar a vertente da imagem do corpo, o que apontaria para o enodamento dos três registros.
O enlaçamento da referência vazia com a assunção do próprio gozo parece constituir o pressuposto para não se ter uma saída cínica.
Para concluir, trago um exemplo interessante, divertido, citado por Jacques-Alain Miller em relação ao vazio da referência. Naquela época (1988), de vez em quando, ele mencionava o psicanalista suíço François Ansermet e, como na França ainda não o conheciam, alguns acharam que seria um personagem inventado por Miller…