Por Andrea Vilanova
Cartel: Corpo, imagem e tecnologias: (re)leituras do Estádio do Espelho entre arte e psicanálise.
Cartelizantes: Andrea Vilanova (mais-um), Carla Sá Freire Cunha, Cristina Bezerril e Fabiano Fernandes.
“Aquele que produz uma obra, seja esta uma obra de arte ou não, articula os três registros.”
Stella Jimenez (1997)
A pandemia nos expropriou de nosso cotidiano, subverteu nossos laços, exigindo distanciamento, novos hábitos e muito mais. O trabalho de cartel que seguimos construindo ao longo dos últimos meses nasce dessa experiência de ruptura, mas também de uma convocação a tomar de modo não apenas pragmático o uso dos recursos audiovisuais e a presença das telas em nosso cotidiano. São muitas vias possíveis de interrogação dentro desse oceano digital.
Decidi recolher um pouco de uma experiência desenvolvida em minha pesquisa de pós-doutorado em 2019, sobretudo porque também traz essa marca de uma subversão dos modos de enlace com a vida vivida, a partir da experiência de entrada dos jovens estudantes cotistas na universidade pública. A realização dessa pesquisa na universidade surgiu de uma interrogação acerca da demanda generalizada por atendimento em saúde mental. E encontrou na temática das migrações o pano de fundo, a partir dos deslocamentos exigidos pelo ingresso de estudantes cotistas e bolsistas na universidade pública, tradicional reduto da classe média.
Migrantes de outras regiões do país, dos confins da cidade do Rio, testemunhas de tantas travessias, esses jovens enfrentam seus próprios desafios diante da necessária remontagem de seu cotidiano. Fragilizam-se face às novas exigências e aos impasses que se apresentam quando “o sonho de entrar na universidade se torna um pesadelo” – uma frase ouvida de muitos, mas que ganha sua modulação um a um. A aposta de que o mal-estar vivido e narrado por estudantes cotistas na universidade pudesse encontrar um destino diferente do tratamento em saúde mental, aportou em um encontro com a arte, a partir desse projeto de pós-doutorado.
A solidão do exílio como constituinte da subjetividade, ponto de partida, enlaça esses dois recortes que articulo. A marca dessas experiências – a pandemia e a entrada de “migrantes” na universidade – é o encontro com uma contingência radical a exigir trabalho. Nesta comunicação, pretendo assentar um pouco as pedras no caminho já percorrido da minha pesquisa na universidade, à luz do caminho que ainda percorremos na pandemia, e no trabalho de cartel.
Como propõe o nome do cartel, é entre psicanálise e arte que encontro uma possibilidade de ler algo do que esses estudantes me ensinaram por meio de suas soluções e, sobretudo, seus modos de elaboração apoiados na multiplicidade de suportes e discursos que o campo da arte comporta. Revisitar esse material foi reencontrar pistas do segue me interrogando.
A psicanálise sempre se serviu da matéria que os artistas colocam no mundo, como afirmou Freud, mas é Lacan quem acentua que não se trata de interpretar as obras de arte. São elas que interpretam. Se a pulsão freudiana coloca na cena do mundo nossa posição de objeto, ao mesmo tempo em que nos convida a uma posição inédita no mundo, indissociável do objeto que lhe dá materialidade e consistência nos desfiladeiros do significante, é com Lacan que isto se evidencia. É com o objeto a que vem reescrever a dimensão do objeto em psicanálise, ao inscrever a satisfação pulsional no cerne de nossa existência, apoiada no objeto que o encontro com a língua recorta para cada um.
A passagem que Lacan opera ao formular a dimensão escópica, recorta o olhar e inscreve um plano de leitura inédito ao colocar o objeto a entre o visível e o invisível, entre semblante e furo. Isto nos coloca no coração das questões suscitadas pela arte moderna e contemporânea que dialogam com a psicanálise a partir da perspectiva do objeto. Recorto, portanto, no ato de criação, a marca do objeto: de sua elevação à “dignidade da Coisa” na sublimação, à “salvação pelos dejetos”, diante do desvanecimento do Outro.
Hoje, diante de nosso país em colapso, me vem a urgência de escrever sobre essa experiência, pelo que ela segue escrevendo em mim. Vivemos um momento que dura demais e não pode ser percorrido sem nos servirmos daquilo que nos engancha na vida. Porque se a morte é certa, hoje sua precipitação é um projeto escancarado. Diante dos desmandos frente à condução da pandemia pela COVID-19 não podemos ignorar a permanência da política genocida de um Estado que mata à queima-roupa uma população jovem, gente preta, gente que descobriu o caminho da universidade.
“Cada homem é um artista”, afirmou Joseph Beuys[1], para quem todo ato humano é um ato criador. Inclassificável, Beuys é um dos mais influentes artistas da segunda metade do século XX. Sua obra transita entre suportes diversos, elementos orgânicos, obras efêmeras, performances. É o nome do artista que amarra toda a profusão de intervenções e objetos que interpretam o seu tempo.
Do sublime ao dejeto, os artistas com suas próprias entranhas espalhadas por aí, colocam no mundo objetos que inquietam, interrogam, perturbam. Somos atingidos em cheio pelo que, estrangeiro em nós mesmos, retorna desde fora. Seguir os passos de artistas que produziram obras em torno do tema migrações recolocou em perspectiva as inúmeras facetas da própria experiência recolhida por cada um de nós ao longo da referida pesquisa. A pergunta que me movia a partir das minhas inquietações – O que poderia ser possível na abordagem da crescente demanda por “tratamento em saúde mental”, já que não se trata de psicanálise para todos, diante do sofrimento desses estudantes? – encontrou na travessia do abismo que separa o Instituto de Psiquiatria e a Escola de Comunicação, uma via inédita que segue me ensinando.
Como conclusão do curso, durante o qual desenvolvi minha pesquisa, ao final de um semestre de experimentações, realizamos uma oficina de trabalho final onde os participantes, organizados em pequenos grupos, trouxeram suas elaborações, servindo-se dos mais diversos suportes: fotografia, vídeo, performance, texto, desenho, colagem… As apresentações resultaram em uma série de trabalhos, nos quais se alternavam todos e cada um nos papéis de público, protagonista, diretor, crítico… Assisti temas dramáticos performarem-se, encarnados em formas surpreendentes, encenados, deslocados do pathos.
Que manejo do objeto o tratamento estético oferece, dando corpo a vivências singulares, indo além do desabafo, da queixa ou do lamento, operando sobre e a partir do vivido, indo além de qualquer ficção? Aqui retomo a epígrafe: “Aquele que produz uma obra, seja esta uma obra de arte ou não, articula os três registros.” No seu texto, Stella (1997) desenvolve a questão a partir da ideia de uma “consolidação do sinthoma” de forma opaca, sem que se faça escutar a “verdade do sinthoma” (p. 199). Nisso temos uma pista fundamental.
É evidente que o recorte que essa experiência de pesquisa na universidade oferece não se superpõe a um trabalho de artista no sentido estrito, considerando a trajetória que cada obra escreve enlaçando corpo e nome. No entanto, algumas pinceladas foram possíveis, além de ter recolhido modos inéditos de construir bordas frente à inconsistência do Outro – “universidade mãe e madrasta” – que tanto perturba e desorganiza, promovendo as demandas de tratamento em busca de “saúde mental”.
Um dos trabalhos foi um vídeo no qual um aluno, que chamarei Pedro, foi entrevistado por outros colegas de turma. “Sou filho de uma dona de casa e de um técnico em refrigeração, morador da Baixada, nunca tinha vindo para a zona sul. Atravesso a metrópole para chegar aqui. Foi um choque, duas horas e meia para chegar aqui e depois voltar para casa. […] Eu não sabia o que era uma ciclovia, quase fui atropelado algumas vezes. […] Sou o primeiro da minha família na universidade. Na pelada do final de semana, meus amigos me perguntam sobre a faculdade. […] Estou aqui, não segui o caminho comum aos meus amigos, nem o caminho do meu pai”. Nas cenas do vídeo, ele circula pelos corredores da ECO, é recebido por algum colega em cada espaço em que chega. Ao fundo o som de “Pequenas alegrias da vida adulta (Emicida): “Deve-se ter cuidado ao passar no trapézio / Memo que pese o desespero dos novos tempos”. O título do trabalho é “Caxias”, que se tornou nome para Pedro na universidade.