Do que não cessa
Por Maricia Ciscato – Pelo coletivo do “Leituras em cena”
Em 2015, fui atravessada pelo livro “Rio – Histórias de vida e morte”, de Luiz Eduardo Soares. A arte literária contrastada com a violência de nossa cidade misturou-se às minhas próprias experiências na tentativa de contribuir com a modificação da devastação que é a política de segurança pública do Rio de Janeiro. Esse livro me lançou a uma pergunta que até então eu não ousava formular: Como é possível, depois de (muitos) fracassos recorrentes, persistir?
Em 1930, Freud já nos dava, com sua clareza explosiva, o fim da esperança de uma sociedade feliz. Ele escreveu:
“(…) o que há de realidade negada de bom grado é que o ser humano não tem uma natureza pacata, ávida de amor e que no máximo até consegue defender-se quando atacado, mas que, ao contrário, a ele é dado o direito de também incluir entre as suas habilidades pulsionais uma poderosa parcela de inclinação para a agressão. Em consequência disso [segue Freud], o próximo não é, para ele, apenas um possível colaborador e um objeto sexual, mas é também uma tentação, de com ele satisfazer a sua tendência à agressão, de explorar sua força de trabalho sem uma compensação, de usá-lo sexualmente sem o seu consentimento, de se apropriar de seus bens, de humilhá-lo, de lhe causar dores, de martirizá-lo e de matá-lo. Homo homini lúpus [o homem é o lobo do homem] (…)”[1]
Se tivermos em vista o contexto social e político em que estamos metidos, como não cair no cinismo diante da constatação – freudiana – cotidiana – de que não há saída para o pior da humanidade que nos compõe a todos? Como seguir firme numa ética, numa estética e numa política que se desvie da ingenuidade dos ideais, mas também de um conformismo cínico?
“E esse inimigo não tem cessado de vencer”
Em 1940, Walter Benjamin escreveu uma série de teses publicadas sob o título “Sobre o conceito da história” (os últimos escritos antes do suicídio que o lançou para fora da vida, e também do nazismo). Na sexta tese do texto, há um trecho que, para mim, vibra especialmente e que gostaria de retomar antes do nosso evento de hoje. Diz Benjamin, sobre o historiador, que ele “tem o dom de despertar no passado as centelhas da esperança” e que deve estar “convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer.” E acrescenta: “E esse inimigo não tem cessado de vencer.”[2]
A expressão usada por Benjamin – “e esse inimigo não tem cessado de vencer” – me parece brilhante e precisa. Ele não escreve “e o inimigo venceu”. Ele nos remete, numa poesia política, a um trabalho que não tem fim, a algo que não cessa (de se escrever, podemos dizer) na história da humanidade. É desse ponto, o dos horrores que “não cessam” de se apresentar na história e no humano, que queremos retomar uma questão que não é muito próxima à psicanálise, mas que se apresentou ao “Leituras em Cena”: a “esperança”.
Foi ela que fez vibrar a conversação que se estabeleceu em nosso evento anterior, em 2019, daquela vez com a presença da Cia dos Atores e com a leitura especialíssima da peça “Insetos”. Na ocasião, os artistas nos interrogavam como podíamos nós, analistas, não contar com a esperança.
Em uma análise, jogamos com uma “erótica do tempo” (expressão usada por Miller), que envolve o passado e o presente, com suas surpresas, mas também, é evidente, com a perspectiva de um porvir. Não vamos sem isso. Apenas não contamos com que, nele, enfim, tudo poderá ser diferente. O que não nos impede de apostarmos em alguma diferença – falamos nós da tal “diferença absoluta”. Será que, como diz Benjamin, em uma análise “despertamos no passado centelhas de esperança?”
“Permanentes repetições inéditas”
Numa dessas contingências da vida, ainda tocados pelo acontecimento que a leitura da peça “Insetos” nos causou, nos encontramos com “Sísifo”, peça escrita (em 2019) por Vinícius Calderoni (que temos a honra de receber aqui hoje) e por Gregório Duvivier, e transformada em um lindo livro pela Editora Cobogó, parceira querida deste projeto (também presente hoje aqui).
A peça é um monólogo maravilhoso, com Duvivier em cena, e da qual teremos um gostinho com a leitura de uma pequena seleção de cenas que faremos logo mais.
No livro da peça, em um texto ao final, Calderoni diz: “Compreender que não há esperança para a humanidade é relembrar que o que nos faz e nos mantém humanos é ter esperança”. Que paradoxo bom de seguir. Tal como Sísifo, empurramos a pedra até o topo com a certeza absoluta de que ela, chegando lá, tornará a cair.
Empurrar e empurrar, ver cair e cair, sem a mínima esperança de que, desta vez, a pedra ficará paradinha lá em cima, e que o trabalho, então, não terá sido em vão, terá enfim se concluído; “teremos vencido”. Essa é a esperança que não temos. E que bom.
Calderoni, em outro trecho de seu texto, ao final do livro, diz: “Porque se Sísifo nos fala de repetição, ele nos fala de teatro: cada intérprete é sempre um pouco Sísifo, noite após noite, repetindo frases, gestos, entonações, repetindo, repetindo, repetindo, para que tudo seja sempre novo a cada noite. Permanentes repetições inéditas.” (p.95)
À experiência do inédito no que é sempre o mesmo é que queremos dedicar essa noite de trabalho, esse encontro deslocado que o Leituras em Cena visa fazer acontecer. Segundo Camus, é preciso conceber Sísifo feliz. A perda está dada de partida, o que não impede a vida, pelo contrário, é isso o que pode fazer, de alguns momentos, verdadeiros “acontecimentos”. A surpresa na série, uma irrupção viva do que nos é estranhamente conhecido de muito. Centelhas de gozo.
A esperança como ato e laço
Antes de passar a palavra, queria retomar um trechinho de Paulo Freire que circulou pelas mídias recentemente, na comemoração dos 100 anos de seu nascimento. Diz ele:
“É preciso ter esperança, mas ter esperança do verbo esperançar; porque tem gente que tem esperança do verbo esperar. E esperança do verbo esperar não é esperança, é espera. Esperançar é se levantar, esperançar é ir atrás, esperançar é construir, esperançar é não desistir! Esperançar é levar adiante, esperançar é juntar-se com outros para fazer de outro modo…”
Dou ênfase aqui não apenas ao que podemos tomar como uma dimensão de “ato” dessa esperança a que nos convida Paulo Freire, mas também ao laço que ela exige, esse “juntar-se com outros para fazer de outro modo”, algo que pode nos permitir avançar nos impasses – que são mais ou menos os de sempre –, mas talvez de outro jeito.
Segundo Gregório Duvivier, em seu texto no livro: “O teatro é uma pedra que se empurra junto com um bando de gente”. Assim também é um pouco uma Escola de psicanálise: um “laboratório de experiências” que não se faz de modo algum “sem os outros”, embora tampouco se faça em grupo.
Vale lembrar que um dos principais efeitos do discurso capitalista no laço é rompê-lo. Todos os discursos formulados por Lacan trabalham com as dimensões da impotência, da separação e do impossível. Há falhas ou furos que os compõem. Há limites em jogo. Há pontos de parada. Mas no discurso do capitalista isso que se colocaria como intervalo, hiância, é justamente o que se visa eliminar – o que “não cessa de vencer”.[3] No discurso capitalista, os elementos circulam numa rotação, como se pudessem sempre mais, infinitamente, consumindo o sujeito e, com ele, a possibilidade do laço – pois o laço exige, para fazer costura, furos.
Os furos de Sísifo são um respiro entre cada recomeço. São as paradas do ator entre um subir e um descer; os pontos de impossível com que a arte faz texto e atuação; e, com isso, o intervalo que promovem em nós, público. Um momento em que nos remetem a pensar: “a que ponto chegamos?”, e nos provocam a trabalhar a partir do que não cessa de não se escrever. É aí que gostaríamos de mergulhar para nos enlaçar e para esperançar, hoje, aqui, em ato, com vocês. Quem sabe escrever um acontecimento?
O “Leituras em Cena” é atualmente composto por Dinah Kleve, Lourenço Astúa, Natasha Berditchesvky, Renata Martinez, Isabel Duarte e por mim. E para nosso evento de hoje, temos o prazer de ter conosco, Vinícius Calderoni, que é autor, encenador, roteirista e músico; Isabel Diegues, diretora editorial Cobogó e coordenadora da Coleção Dramaturgia, uma já antiga parceira, mais do que especial; e nossa querida colega da Seção, a psicanalista Ana Lucia Lutterbach, AME da EBP/AMP, que há muitos anos fez o testemunho de seu final de análise. Agradecemos imensamente a cada um deles por toparem essa nossa maluquice aqui, acima de tudo despretensiosa – aliás, despretensioso, é o S1 que rege os encontros do “Leituras em cena” e que tem nos permitido seguir até aqui, com muita alegria e boas risadas, apesar de tudo.
Passo a palavra a Isabel Diegues e depois daremos início à nossa leitura, com algumas cenas que selecionamos especialmente para hj. Ao final, Ana Lúcia irá abrir a conversa com Vinícius Calderoni. Desejamos um bom evento a todos!