Uma diferença sutil de grande alcance

Por Ana Tereza de Faria Groisman

Boa noite.

Minha contribuição diz respeito a dois pontos que destacamos do caso de Lucia Tower: o inconsciente do analista e o desejo do analista; dois pontos que podem ser lidos num mesmo eixo. 

Lucia nos ensina sobre o deslocamento, num percurso de formação, do desejo de tornar-se analista para o Desejo do analista; desejos quase antinômicos entre si e que, ao mesmo tempo, mantém uma relação paradoxal. Se de início poderíamos supor que logicamente um levaria ao outro, afinal, busca-se uma formação a partir do primeiro, logo percebemos que um é entrave para o outro. Jacques Alain Miller nos adverte que o desejo de ser analista é, no fundo, de qualidade bem duvidosa1.

Quando Lucia nos revela que o que a orientava era uma “atitude terapêutica desejável de infinita paciência e esforço de compreensão”, percebemos que tal atitude não estava aberta à contingência do encontro com a paciente; era um ideal terapêutico que a impedia de escutar algo da transferência. A reação contra-transferencial do acting out coloca em evidência sua porção de resistência ao tratamento. Mas, num movimento freudiano, Lucia não recua diante disso. Ao contrário, tira consequências daquilo que aparece como rasura no tratamento, como o que, ao se apagar, destaca a presença do inconsciente na cena. O que nos pareceu interessante de destacar nesse caso diz respeito ao fato de que, ao contrário dos teóricos da contratransferência, ela não vai buscar em sua paciente os motivos para seu esquecimento, mas sim em seu sintoma infantil, em sua histoeria. Esse acting faz irromper por trás da “atitude terapêutica desejável” uma “resistência prolongada ao abuso”, que não contribuía em nada para que a paciente se deslocasse de sua posição raivosa e paranóica junto a ela e possivelmente junto aos outros. Debruçar-se sobre seu esquecimento, fez vir à tona uma série de afetos até então desconhecidos por Lucia, possibilitando-lhe se retificar na cena analítica.

A pergunta que surgiu então foi: o que provocou esse deslocamento? Não se trata de fazer apologia ao acting out, ele não é um movimento previsto e nem intencional. Ele acontece, irrompe na cena e, quando ocorre, o que fazer com isso? Como interpretá-lo? A pessoa que suporta a função do analista não é imune ao inconsciente. Se algo escapou, se infiltrou no discurso, no silêncio e nos atos, o que faremos a partir de então?

Um ponto crucial de nossa discussão foi separar o acting out do desejo do analista, separar sem, no entanto, perder sua articulação.

Não acreditamos que o acting out deriva do desejo do analista, ele foi produzido pela resistência, ou pela contratransferência, como nomeia Lucia. Como na rasura de Freud2, é um apagamento, um não querer perder, não querer ceder de sua posição de infinita paciência, uma posição idealizada, de abnegação e altruísmo, que só faz dar consistência ao Outro e, no caso, aumentar a crueldade que a paciente lhe dirigia. Entretanto, o trabalho da analista a partir desse esquecimento só foi possível por ela ter sido sensível ao valor de interpretação que o acting produziu, primeiro sobre ela e, num segundo momento, sobre sua paciente.

Aprendemos com Lacan que a transferência se dirige, para além do SsS, à relação do analista com o inconsciente. Lucia sustenta com Freud, e nisso nos sustentamos também, que: “não se supõe existirem analistas tão perfeitamente analisados a ponto de não terem mais um inconsciente, ou estarem imunes ao revés de impulsos instintivos e de defesas contra esses impulsos”. É uma premissa básica da psicanálise que todos os seres humanos são tomados por um inconsciente que não está sujeito à investigação através da neurose de transferência3.

Nossa questão é: que destino é possível dar às formações do inconsciente quando irrompem na condução de um tratamento?

Atravessada a angústia, que muitas vezes acompanha esses momentos de irrupção, o desejo do analista, diferentemente da resistência, possibilita o reviramento de impasse, o motor de trabalho analítico. No caso estudado por nós, fica claro que a analista não recua frente aos tropeços inerentes ao percurso de uma análise.

A transposição do esquecimento em silêncio nos dá notícias do movimento que ela fez no sentido de dar lugar ao desejo do analista. Miller, em seu curso “Coisas de fineza”, nos brinda com uma ótima definição do desejo do analista. Ele diz: “O desejo do analista não é da ordem do fazer. É, essencialmente, a suspensão de qualquer demanda por parte do analista, a suspensão de qualquer demanda de ser. O analista não pede ao sujeito que seja inteligente, que seja verídico, não pede ao sujeito que seja bom, que seja decente, pede somente que fale do que passa por sua cabeça, que entregue o mais superficial do que lhe vem ao conhecimento.4

A partir dessa definição, nossa pergunta sobre o que muda do calar-se5 inicial da analista frente às injúrias de sua paciente para o silêncio que ela presentifica a partir do seu acting out, encontra um bom caminho. A mudança entre o calar-se e o silêncio diz respeito ao esvaziamento da demanda por parte de Lucia, que como ela mesma informa, “estava muito interessada em ajudar” sua paciente. Dar-se conta de sua contratransferência possibilitou se deslocar da cena da intersubjetividade e dar lugar ao vazio que seu silêncio passa a incluir.

Passar da contratransferência para o desejo do analista, ou para a transferência do analista com o inconsciente, não é um simples deslocamento no campo semântico, mas sim um deslocamento subjetivo de proporções enormes que retifica o analista em sua posição e abre o espaço necessário para que o ato advenha no lugar do sujeito.  Uma diferença sutil, mas de grande alcance. 

O que resta das análises, o inconsciente, ainda inassimilável em grande parte, dá sinais de existência e precisa ser trabalhado em supervisão a cada vez, “desembarulhando”6 o analista e limpando sua escuta para o que se diz por trás do que se ouve.

Notas

  1. Miller, J.A. Perspectivas dos Escritos e Outros Escritos de Lacan. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2011, p.35
  2. Freud, S. :“A sutileza de um ato falho”, 1935
  3. Tower, L.:“Contratransferencia”publicado no IV volume do “The Journal of the American Psycho-Analytic Association” em 1956.
  4. Miller, J.A. Perspectivas dos Escritos e Outros Escritos de Lacan. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2011, p.35 
  5. Em meu texto inicial, estava escrito “do silêncio inicial” e agradeço à Angela Bernardes por essa retificação.
  6. Este neologismo surgiu numa atividade da seção Rio no dia 09/09/19, intitulada: “O passe e a clínica” um ato falho de Marina Recalde, quando respondia sobre a supervisão do AE. 
Compartilhar
Rolar para o topo