As mulheres são melhores analistas? Em torno do caso de Lucy Tower

Por Ana Beatriz Freire

Trabalho resultado do Cartel para o primeiro encontro do Seminário Clínico 2021, formado por Ana Beatriz Freire, Ana Tereza de Faria Groisman, Marcia Zucchi, Maria Corrêa de Oliveira, Maria Silvia Hanna, Vânia Gomes (mais um).

Na “Conferência em Genebra” Lacan afirma: “Deve-se julgar isso entre as mulheres analistas. As mulheres analistas são as melhores. São melhores que o homem analista”1. Como observa Elisa Alvarenga sobre essa passagem em seu artigo2 “As mulheres analistas”: “É curioso notar que ele diz mulheres analistas, no plural, e homem analista, no singular”. Mais tarde, em 1980, Lacan dirá sobre as mulheres que são “[…] as melhores analistas, quando não as piores”.3

Sabemos que quando falamos de mulheres é sempre uma a uma, e no homem podemos, através da referência fálica, agrupar em um todo, em um conjunto que se forma pela exceção. Também sabemos que para Lacan, homem (no singular) e mulheres só podem ser situados na sua particularidade pelas fórmulas da sexuação, pelas posições sexuadas e não apenas pelo sexo anatômico como tal. A questão que podemos colocar com Elisa Alvarenga seria: como o significante falo, como significante concebido como semblante, é abordado por Lacan nessa distinção homem/mulher? Ou melhor, haveria diferentes semblantes que distinguiriam o homem das mulheres e que pudessem diferenciá-los na função de analista?

Nesse Seminário livro 10, interrogamos o que nos toca particularmente nos seguintes termos: será que há distinção entre homem e mulher na posição do analista? E, mais ainda, o que as teóricas da contratransferência nos ensinam?

Utilizamos o termo “teóricas” no feminino e no plural, pois como afirma Lacan no Seminário livro 10: “[…] se há pessoas que disseram alguma coisa sensata sobre a chamada contratransferência, elas foram unicamente mulheres […]. Foram as mulheres em sua maioria esmagadora, que ousaram falar da coisa e disseram coisas interessantes”.4

Lucy Tower define com Lacan a contratransferência “[…] como tudo que o psicanalista recalca do que recebe na análise como significante”.5

Segundo Lacan: “[…] a questão se esclarecerá totalmente se a tomarmos pela vertente […], pela função do desejo do amor”.6 Se desejo, nesse seminário, se situa vinculado ao amor e não apenas ao objeto, a questão que se impõe é: o desejo do analista, segundo as articulações dessa época, precisa, deve ser pensado a partir da experiência do amor, amor de transferência?

Sobre a relação do desejo com o gozo, Lacan afirma que: “[…] parece que a mulher compreende muitíssimo bem o que é o desejo do analista. Como se produz isso?”, ele nos interroga. Sendo a angústia o meio termo entre gozo e desejo, Lacan conclui com a célebre afirmação: “[…] Só o amor permite ao gozo condescender ao desejo”.7 Sendo que, nesse seminário, ele faz coincidir desejo e lei.

Ainda neste Seminário livro 10, Lacan diz que a relação direta da mulher com o desejo do Outro, que só passa secundariamente pelo falo, faz com que “[…] quando ela se dedica à nossa nobre profissão fique no lugar desse desejo numa relação que sentimos ser muito mais livre”.8 Parece que aqui Lacan antecipa o que desenvolverá mais tarde, no Seminário livro 20, como a posição da mulher “não toda” fálica, o que permitiria que ela se deixe guiar mais facilmente pelo desejo do analista, como diferença, segundo o Seminário livro 11, “absoluta”.9

Vejamos como o amor de transferência se situa no exemplo de Lucy Tower, em particular no uso que ela faz do acting out, do esquecimento da sessão da paciente que “abusava”, segundo seus termos, de sua escuta.

Lugar do acting out e desejo do analista

O acting out retificou o tratamento, pois como a própria analista admitiu “se não fosse minha repentina solução, através do acting out, teriam durado muito mais tempo os impasses” (oimpasse de“ter sido paciente com ela por tempo excessivo”).Segundo Tower, o escutar excessivamente a agressividade – fala nomeada pela analista como abusiva – tem relação com um luto não resolvido, da sua própria análise. Questão que poderia ser atualizada,com os termos de Lacan, como:será que o que não foi simbolizável na infância e não elaborado na transferência da própria analista retorna no real, no caso, no campo do ato, como acting out?

Ao admitir que de fato esqueceu a sessão, e sobretudo ao responder com seu silêncio, sem responder com um saber a priori, a analista esvazia o escutar a qualquer preço e se coloca na posição vazia de objeto. Objeto que passa a causar e que propicia o gozo (o abuso) condescender ao desejo, convidando-a à transferência como amor e ao trabalho de análise. O acting out como aquilo que não foi elaborado – pelos limites, impossibilidade talvez própria ao simbólico, da linguagem, de não tudo ser simbolizável – elevou-se à dignidade de um ato analítico propriamente dito. Ato analítico onde o SA/ se presentificou como um esvaziamento na consistência do Outro – da analista como suposto saber e como lugar de identificação. 

Lucy Tower, talvez na posição “não toda fálica”, interroga sua conduta através do acting out, do esquecimento da sessão, remetendo, com o silêncio, ao não saber e ao desejo do analista. A partir desse ato analítico de calar-se e tomar o esquecimento como um lapso, um “esp de um laps”10, a analisanda conseguiu afrouxar seus sintomas defensivos frente ao trabalho propriamente da formação inconsciente e permitiu seguir seu tratamento em direção à associação livre e à construção, quiçá, do sinthoma, do seu mais íntimo particular do gozo. Não seria esse lapso a manifestação como surpresa do inconsciente (real) o que propiciou o ato e a presença do desejo do analista?

Notas

  1. LACAN, J. “Conferência em Genebra sobre o sintoma”. In: Opção Lacaniana 23, São Paulo, dez. 1998, p. 13.
  2. ALVARENGA, Elisa. “As mulheres analistas”. In: AMP e WAP – Associação Mundial de Psicanálise. Disponível em: <https://wapol.org/pt/articulos/TemplateImpresion.asp?intPublicacion=29&intEdicion=4&intArticulo=2098&intIdiomaArticulo=9>.
  3.  LACAN, J. El Outro barrado, clase 2 del Seminário 27, “Disolución”, 15.01.1980.
  4.  LACAN, J. (1962-1963). O Seminário livro 10. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. p. 170.
  5.  Ibid., p. 165.
  6.  Ibid., p. 170.
  7.  Ibid., p. 197.
  8.  Ibid., p. 202. A esse propósito, conferir texto de Maria Inês Lamy, “O analista e a mulher” publicado em EBP-Rio, Arquivos da Biblioteca, n. 9, agosto de 2014.
  9.  LACAN, J. (1964). O Seminário livro 11. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. p. 260.
  10.  LACAN, J. “Prefácio à edição inglesa d’O Seminário 11 (1976). In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p. 567.
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