Nota sobre a referência e o real – SOL*

Por Cristina Duba

Quero começar agradecendo a Ana Tereza Groisman, e ao Conselho, pelo convite para tentar trazer aqui uma pequena contribuição para o Seminário de Orientação Lacaniana, atividade fundamental da EBP-Rio. Vou assim expor a questão à que me remeti ao receber esse convite de Ana Tereza para comentar o capítulo 22 e 23 do seminário de J-A Miller, Causa e Consentimento.[1] Preciso também mencionar que me apoiei em grande parte no espírito que nos norteia no Núcleo de Pesquisa de Psicanálise e Direito do ICP, a quem devo muito pelas discussões e contribuições em relação ao tema do negacionismo, que estamos trabalhando no momento e que nos fez retornar ao texto de Freud, A Negativa[2], e aos comentários de Jean Hyppolite e Lacan[3] a esse respeito. Vamos lá:

Vou partir de uma cena extraída de um relato autobiográfico de Jorge Semprun, que tomo como paradigmática e que já algumas vezes, e há alguns anos, extraí de seu livro A Escrita ou a vida[4] para tratar de questões que reputo como essenciais na literatura de testemunho, a partir do que nela nos interessa como psicanalistas, que é a questão da referência e do real.

Em breves palavras, a questão é a seguinte: Jorge Semprun, jovem militante do partido comunista, radicado na França desde a derrota da República espanhola pelos falangistas liderados por Franco, membro da Resistência Francesa (houve o mito da resistência francesa, como diz Laurent[5], mas também havia seus verdadeiros combatentes), é preso e levado ao campo de concentração de Buchenwald. Passa por todos os horrores que podemos supor e, após sua libertação, decorrem dez anos até que possa falar e a seguir escrever sobre sua experiência. Negava-se a isso. Duas cenas, dois olhares marcam seu relato. O olhar aterrado do soldado que o encontra no momento da liberação do campo, e que lhe devolve sua imagem: era seu próprio olhar devastado que o via, ele, Jorge, se dá conta. Após a liberação do campo uma questão passou a atormentá-lo, bem como a alguns sobreviventes: como narrar o inverossímil, o que não tem aparência de verdade, não é crível, como tornar crível o real, o que está aquém ou além das palavras que o possam narrar, aquilo que radicalmente excede a representação e se apresenta como a emergência do real em sua face radical de horror? As palavras são insuficientes para isso, só a ficção pode torná-la verídica, torná-la crível, torná-la verossímil, conclui. Podemos dizer: só a ficção, ao renunciar à referência, pode tocar, apontar o irrepresentável, ao consentir nesse vazio entre a representação e a referência, pode então aceder, dizer sim, consentir à narração. Passaram-se dez anos para que isso tomasse forma, para que, em outra cena, após um encontro com outro olhar no metrô, o desvanecimento, o apagamento, do sujeito materializasse num desmaio o apagamento em que sua vida transcorria. Como um despertar: ao introduzir esse vazio, foi então possível ceder à escrita sem perder a vida. Foi possível renunciar a tudo dizer, para semidizer.

Podemos então pensar que só pelo artifício da arte, dos saltos da poesia, pela prevalência da função conotativa, que dá expressão a essa renúncia a perseguir a referência para dizer a verdade, será possível dizê-la, a verdade, em parte, não toda, ou melhor, se deixar dizer pela verdade (“eu digo sempre a verdade: não toda, porque dizê-la toda não se consegue. Dizê-la toda é impossível, materialmente: faltam palavras. É por esse impossível, inclusive, que a verdade tem a ver com o real)[6]. É preciso conceder à insuficiência da linguagem, ao vazio que a separa do acontecimento, para poder se acercar dos confins do dizível. Semprun pode então escrever sua ficção, não-toda verdadeira, seu relato auto-biográfico, que transmite dessa experiência de real os resíduos que é possível apreender, como a menção  ao inesquecível cheiro da fumaça que suas palavras não apreendem, resíduos do real.

Nesse sentido, a questão que se põe para mim, particularmente, e que tem se nutrido das questões de cada um dos participantes e que são trabalhadas no Núcleo, é a dimensão que tomou no Brasil, especificamente, a questão do negacionismo enquanto esta generalização, essa propagação em ondas do que vou ousar chamar de efeito cloroquina. Assim, a questão do negacionismo, não certamente do ponto de vista geral, histórico, social, econômico, nem de suas apropriações políticas, ou mesmo propriamente cínicas, utilitárias, mas do ponto de vista do ser humano tomado como mercadoria nesse processo, apaixonado por não saber, empenhado nessa militância muitas vezes solitária do desconhecimento, nessa frágil defesa frente ao real da pandemia. Sim, porque a pandemia foi o momento em que a lógica do ausstossung, da expulsão, da ejeção do mal, falhou decididamente. Num átimo, digamos assim, essas fronteiras se abalaram a ponto de praticamente se dissiparem, ficou evidente o fracasso das defesas que localizavam o mal fora: o inimigo estava entre nós. Não havia fora da pandemia. E o corpo, portanto, em sua dimensão de estranho, de exterioridade interior, se evidenciou. Não havia mais como retornar à rotina consagrada do normal, a salvo dos golpes súbitos do real. Se a lógica dos neo-fascismos exige a localização do inimigo externo, a crise estava colocada.

Minha pergunta é então se podemos pensar que o negacionismo, enquanto essa generalização de um não que seria necessário para a formação da realidade, não se transforma numa negação da negação, num rechaço da realidade como uma defesa radical contra o real, que nos chega sempre aos saltos, que se deixa conhecer nos tropeços, acontecimentos, pandemias. É uma ficção certamente o negacionismo, mas que curiosamente abandona a relação verídica com o real, como diz Lacan em seu texto sobre a psiquiatria inglesa e a guerra[7]. Aqui vale notar que é surpreendente como o conceito de “narrativa”, rebaixado aqui a uma mera noção quase de senso comum, seja tão disseminadamente utilizado atualmente por autoridades tão pouco habituadas às reflexões epistêmicas ou literárias, desde o ministro Braga Neto até – pasmemos todos – Bolsonaro e Luciano Hang. A  referência que não se atinge, “o assassinato da coisa”, nos levou ao reinado cínico das narrativas? A cada um, sua narrativa? Assim, nessa era das narrativas, sem lastro no vazio de sentido, a perda de referência pode ser positivada no cinismo. Podemos supor que esse vetor oracular, conotativo, da linguagem, que a vincula à verdade – “eu, a verdade, vos fala”… ( e “eu” não pode falar a verdade, eu é desconhecimento) e fala de banda, à meia voz – esse vetor oracular, então, declina, abrindo caminho às paixões obscuras da ignorância, aos sacrifícios aos deuses obscuros de que nos falava Lacan?

*Texto produzido para o Seminário de Orientação Lacaniana (SOL) realizado em 08 de novembro de 2021 a partir dos capítulos XXII (‘De que falamos?’) e XXIII (‘A referência vazia’) do seminário “Causa e consentimento” (1987-1988) de Jacques-Alain Miller.

[1] Miller, JA, Causa y Consentimiento, Buenos Aires, Paidós, 2019
[2] Freud, S, A negativa em obras Completas, Buenos Aires, Amorrortu, 1993
[3] Lacan, J, Escritos, RJ, Jorge Zahar, 1998
[4] Semprun, J, A Escrita ou a Vida, São Paulo, Companhia das Letras, 1995
[5] Laurent, E, O real e o grupo em Cartel, Novas Leituras,Ed. Nohemi Brown,São Paulo, Escola Brasileira de Psicanálise, 2021
[6] Lacan, J, Outros Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1998
[7] Lacan, J, Outros Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1998
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