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A sintomatização das categorias analíticas

Bom dia a todos,

Abrimos agora nossa atividade da Biblioteca da Seção Minas Gerais da EBP[i], tendo como convidada nossa colega da Seção Rio da EBP, Ana Lúcia Luterbach, AME da Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise, bem conhecida e estimada por todos nós.

Antes de passar a palavra a Ana, farei uma rápida introdução à questão da sinthomatização das categorias analíticas, tema que apresenta e situa a intervenção de Ana.

Jacques-Alain Miller nos chama a atenção para algo que se passa ao longo do ensino de Lacan, a saber: a gradativa elaboração de novas categorias, mais adequadas às questões com as quais teve que se haver Lacan em seu ensino tardio, tanto quanto a uma espécie de releitura, à qual procederá também Lacan, e que consistirá em adequar elaborações e categorias iniciais de seu ensino a exigências tardias, anotadas em sua clínica tanto quanto no próprio movimento do mundo, se eu puder falar assim. Tais exigências serão sempre exigências de satisfação feitas pela pulsão, e nem sempre as de vida, uma vez que tal “movimento do mundo” deverá ser pensado sempre a partir da constatação de que o objeto a atingiu seu zênite social.

Convém também observar que tal releitura será um procedimento ao qual se entregará também o próprio Jacques-Alain Miller, consistindo ela ali, às vezes, em tomar uma frase ou um termo dito ou apresentado por Lacan uma ou duas vezes, elevando-o a uma categoria central em suas elaborações. O exemplo mais célebre de tal procedimento, do qual todos nos beneficiamos, será talvez o de “travessia da fantasia”, sugerido apenas uma vez por Lacan, no livro 11, e tomado por Miller como pivô de toda uma importante elaboração sobre o final da análise.

Podemos dizer, repito, que tais retomadas, que tais releituras de conceitos elaborados no início de seu ensino, seja por Lacan, seja pelo próprio Miller, serão sempre orientadas no sentido de incluir neles a pulsão. Isso como um efeito do qual não podemos escapar, e por nós bem conhecido, do declínio do Nome-do-Pai. Isso ainda trará consequências e mudanças, sendo a da sinthomatização das categorias lacanianas a que nos ocupa hoje.

Será a partir daí que falaremos, portanto, na “sinthomatização” à qual se refere o título inicial de nosso trabalho de hoje, onde o primeiro a passar por tal procedimento, ainda com Lacan e possivelmente a mais famosa delas, será o próprio sintoma. Sabemos que o sinthoma, agora já escrito com th, será distinto do sintoma enquanto uma formação do inconsciente justamente por isso: ele não é mais uma formação do inconsciente, ele não é mais um evento cujo acontecimento se restringirá ao simbólico. Ele, ao incluir em si algo que permanece, que não se desmancha no ar com a interpretação, terá sido sinthomatizado, encontrando seus fundamentos não apenas num inconsciente estruturado como uma linguagem, mas num inconsciente real, quer dizer, que abrigue em si a satisfação pulsional. Seguindo nessa direção, temos a apresentação por Miller, na lição 10 de seu curso O ultimíssimo Lacan, da própria operação de interpretação tocada pelo crivo da sinthomatização. Ela ali será apresentada como uma intervenção não mais restrita à produção de sentido, e sim como uma intervenção que, orientada pela angústia, deverá, pelo mal-entendido, pela homofonia, pelos recursos que podemos aprender com a poesia, ser alcançada visando produzir o sem-sentido, uma vez que o real em jogo define-se justamente por situar-se fora-de-sentido. Isso uma vez que a própria categoria de Outro, de grande Outro, ao ser também sinthomatizada, resultará no que chamamos de parceiro-sintoma, título do Curso Psicanalítico de Miller em 1997 e 1998, imediatamente após o curso dividido com Éric Laurent, O Outro que não existe e seus comitês de ética, onde a inconsistência do Outro em seus fundamentos simbólicos será amplamente demonstrada e debatida. Ora, constatada essa inconsistência do Outro simbólico, virá para um primeiro plano (para um “zênite” social), toda uma relação com o outro enquanto meio de gozo, em substituição à relação com o Outro enquanto pólo de endereçamento da fala.

Ora, como indiquei, o sustentáculo de toda uma ordem simbólica, que perderá então muito de seu prestígio inicial, posto que a satisfação pulsional reivindica sua cidadania, será, justamente, o Nome-do-Pai. De categoria de vocação universal e transcendental, com fortes ressonâncias teológicas desde o Freud de Totem e tabu (o Totem está a meio caminho entre o pai primevo assassinado e deus pai todo poderoso), ele também, e em especial, terá que se haver com os novos tempos. Toda uma ordem patriarcal, em boa parte sustentada em Deus pai, se rearranjará, se desfará, passará por mudanças radicais. Será então quando Lacan, no livro 22 de seu Seminário RSI, nos termos de Miller na lição 10 de seu último curso, O ser e o UM, ESBOÇARÁ (e gostaria de enfatizar o verbo esboçar) uma nova categoria, a saber, a père-version. Tal categoria será nada mais, nada menos que a tentativa de Lacan de SINTHOMATIZAR o Nome-do-Pai, quer dizer, de pensar algo relativo a uma função – ainda uma função -, mas que não se sustentasse mais apenas num universal que veiculasse, como aprendemos em Totem e tabu, uma interdição. Ao contrário, tentando ali pensar e situar o pai, mas marcado pela pulsão, quer dizer, por um gozo próprio e específico a ele, e que se transmitisse. Insisti no termo esboço porque o tomo como um convite feito por Miller para que testemos seu alcance, para que forcemos seus limites e para que insistamos em ampliar seu alcance.

O romance de Christine Angot que Ana trabalhará hoje certamente nos convida a isso: nada mais longe de um pai interditor do que o pai do romance autobiográfico de Angot – um pai incestuoso que manteve com a filha (com seu consentimento) uma longa história erótica de incesto consumado. Se tal categoria, a de père-version, der mostras de que pode alcançar tal situação, bem, poderemos concluir que sim, que a psicanálise dispõe de instrumentos capazes de tocar de perto os impasses e a desordem próprias de um mundo (des)orientado pelas exigências de satisfação pulsional. Vamos lá então.

Sérgio de Castro

 


[i] Atividade da Diretoria de Biblioteca da Seção Minas Gerais da EBP, em 9 de junho de 2018, na sede da Seção Minas Gerais, intitulada “A sintomatização das categorias analíticas: Christine Angot e a père-version”, coordenada por Sérgio de Castro e tendo por convidada Ana Lúcia Luterbach Holck.
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