EDTORIAL 23
De que matéria tecemos uma amizade?
Cristiana Pittella
Psicanalista
Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP)
e Associação Mundial de Psicanálise (AMP)
cristianapittella@yahoo.com.br

Manuel Carvalho e Gustavo Maia, Conversa, 2011.
Bem-vindos à Derivas 23 !
Com alegria, iniciamos a navegar em nossa Derivas! Embarcação sólida que nos ensina a arte do leme firme, cujo lastro não a impede que derive, com leveza, nas ondas e veios sulcados pelas correntezas do espírito do tempo.
O laço que nos une na Escola atravessa montanhas e pelos mares nos mantém sempre em formação. Experiência única, cuja confiança e ânimo permitem a cada um, com o seu gosto e responsabilidade, remar sem descansar. Não sem os outros, reinventamos laços que se estendem ao exterior dela mesma. Pelas vias da transferência de trabalho, potência do desejo que nos reúne, seja pelas contingências, escolhas e determinações, a psicanálise pode ser transmitida (LACAN, 1964/2003).
A amizade será a bússola nesta edição de Derivas.
Orientação muito precisa e oportuna, pois implica a construção de uma rota sem mapas, em mares ainda não traçados, e, com certa liberdade criativa, nos permite a invenção de uma cartografia.
Sigam-nos nesta travessia!
Em Aquele Texto… iniciamos com a letra daquele que deu origem à psicanálise. Ao retornar a Freud, somos sempre surpreendidos! Desde o início, Freud, em suas correspondências com Fliess, revela o vigor, a intimidade e quão prolífica foi essa amizade, mesmo que viesse a ser rompida ao inventar a psicanálise. E, ao abeirar o fim de sua vida, na belíssima Carta a Romain Rolland, que convidamos a lerem aqui, ele nos ensina o quanto a misteriosa atração de uma amizade ao longo dos anos implica e valoriza o reconhecimento das diferenças, dos desacordos e encontros parciais.
Um amigo é um ser que a vida não explica, dizia o poeta (MORAES, 1946). Um mistério que conecta os seres falantes. A amizade convoca não só a alteridade em relação ao outro, mas a si mesmo.
Como uma amizade se sustenta? De que matéria é sua tecedura?
A philia, amizade, é referida por Lacan (1972-73/1985, p. 114) como um laço social, e é pela coragem em suportar a relação intolerável ao ser supremo que os amigos, os philoi, se reconhecem e se escolhem.
Em seu retorno a Freud, Lacan nos orienta a seguir o rastro da impossibilidade do ideal de uma harmonia com um bem supremo, cuja ruína nos guia, sem nostalgia, em direção ao real. Assim, podemos nos perguntar: como tecer uma amizade em torno desse furo, cujo aforismo lacaniano é o da inexistência da relação sexual?
O texto de Serge Cottet, “A philia no espírito da época”, retoma a philia em Aristóteles. A partir de pesquisa publicada em um artigo na coluna de uma revista feminina francesa que circula em todo o mundo, ele nos demonstra como a doxa contemporânea de casal contemplada ali é aristotélica. Tecida em torno da igualdade e da reciprocidade, esse laço é considerado pelo filósofo como o mais harmônico e perfeito em uma amizade. Não sem ironia, Cottet demonstrará como a sexualidade extraconjugal é a garantia para a longevidade nesse modo de enlace.
Seguindo a trilha de Cottet, Jean-François Lebrun desenvolve com detalhes precisos, em seu texto “A philia e o laço conjugal”, os três modos da philia em Aristóteles. A amizade pode estar sustentada pela utilidade, pelo prazer e/ou pela virtude, a saber, o bem mútuo. Lebrun ressalta como a amizade tramada pelos dois primeiros modos pode ser frágil e esgarçar-se com o tempo, face aos interesses e desencontros. A terceira, embora considerada perene, revela uma dimensão do vivente esvaziada, mortificada, e o ex-sexo (hors sexe) dessa ética aristotélica é manifesta.
Em Mathesis, Antônio Teixeira nos ensina, com o seu texto “Da filosofia à erosofia: notas psicanalíticas sobre a amizade em Platão”, que a filosofia envolve a amizade na rede conceitual da pergunta pela sua essência, para enfatizar, entretanto, como a amizade é experimentada sem que se possa fixar sua determinação ontológica. Ele observa que, embora o diálogo platônico suponha que a amizade acolhe a contradição, ela é assimilada por Platão à ideia do amor ao bem como o princípio gerador dos vínculos dialógicos da filosofia. Antônio ressalta que, se no nível sensível eros e philia se encontram dissociados, eles se aproximariam no horizonte assintótico em que amante e amado se apaixonam através do conhecimento filosófico. Com Lacan, ele demarca a ironia platônica quando se tenta fazer valer uma medida mensurável de eros, na ilusão de toda tentativa de se estabelecer uma medida ao encontro sexual.
Com um mergulho nas ondas atuais, mundo em que reinam os contratos, o questionamento das estruturas sociais pelo avanço da ciência e a multiplicação de fraternidades, Henri Kaufmanner demonstrará, desde Freud, que a lei porta a violência, até Lacan, que a fraternidade leva à segregação. Desse modo, ele nos direciona para o caminho antisegregativo da psicanálise, cuja presença do analista, como um vacúolo face ao imperativo do gozo, dá lugar à singularidade de cada um, onde não há fraternidade possível.
Ana Lydia Santiago revém às amizades epistolares tão ricas e frutíferas de Freud com homens e mulheres. Com Freud, ela circunscreve cuidadosamente a amizade como um laço sintomático advindo do amor inibido em sua meta e detalha com minúcias o pensamento freudiano e as vicissitudes desse laço na civilização e nas neuroses, para nos brindar com uma graciosa vinheta clínica. Com Lacan, ela ressalta a importância da contingência e como a amizade vem recobrir a dimensão estruturalmente traumática do sexual. E é nesse ponto do traumatismo, em que se está só com a sua causa, que Ana Lydia nos elucida o que o título de seu texto anuncia: “A amizade na psicanálise: não há”.
“Um laço de amizade / Nos une a nós dois”: Freud cantarolava a ária de Don Giovanni ao acariciar seu cão Jo-fi. E Lacan, sobre a sua cadela Justine, afirma que ela lhe fala em momentos muito sensíveis, mas nos adverte: a linguagem não se reduz à comunicação. O curioso e rigoroso texto de Laura Sokolowsky, “O melhor amigo d’UOM”, demonstra como a parceria tão amada com os pets faz parte dos subelementos do gozo de cada falasser.
Em Você disse contemporâneo? duas entrevistas nos ensinam sobre a potência criativa no encontro da arte com a amizade.
Na primeira entrevista, intitulada “Pintura: sedimentação dos encontros”, três artistas plásticos nos transmitem os efeitos desse encontro. Para Manuel Carvalho e Roberto Freitas, o laço da amizade e as contingências da vida os uniram para uma invenção: pintar telas a quatro mãos. Já para a dupla Manuel Carvalho e Gustavo Maia, a admiração pelo trabalho de cada um os levou a trocar algumas telas para que, a cada vez, o outro colocasse o seu traço. A pintura tornou-se espaço para uma nova amizade.
O trabalho das duplas se faz pelas telas esquecidas, deixadas de lado e sem resolução. Uma salvação não pelo ideal, mas pelos dejetos. As telas se transformam e os transformam. Passam a adquirir um novo sabor, um novo valor. Ao ler e olhar, poderemos estimar de que matéria essas amizades são feitas, o que se deposita no corpo de cada um, em cada obra.
Agradecemos aos artistas, cada dupla, pela gentileza em ceder as palavras, um saber-fazer e as imagens de suas obras, que o leitor poderá apreciar nas rubricas deste número de Derivas.
Na segunda entrevista, temos a estreia do Podcast! É a matéria sonora irresistível que nos faz derivar! Anamáris Pinto, com o seu tom animado e instigante, conversa com Cao Guimarães, cineasta, artista plástico audiovisual e poeta, que nos cede com generosidade a sua voz ao nos apresentar de que matéria é feito o seu novo filme: Amizade. Com ele, podemos aprender a importância e a urgência da amizade na atualidade, em tempos de falta de paciência com o diferente. Ele nos confidencia como a alteridade é um de seus alicerces principais – causa de espanto e curiosidade –, que projeta o desejo de fazer algo na vida, seja uma obra de arte, seja amigos. A convivência com o outro, o encontro e a experiência da riqueza da alteridade, são a base para a renovação, a transformação de si mesmo na vida.
Agradecemos a Cao Guimarães pela presença viva, por nos transmitir os efeitos de sua obra Amizade, advinda de seu arquivo íntimo, para ele mesmo. Escutem só: os amigos, um Outro de mim!
Quem puder contemplar seu filme, com sua plasticidade sonora e imagética, experimentará do que é feita a rede da amizade e saberá a cor da solidão… mas aqui em Derivas ele nos desvela a cor da amizade. Será preciso ceder seu tempo, escutá-los!
Em Sinopses, resenhas. etc. & tal…, ao nos transportar à escrita de Clarice Lispector, Ana Helena Souza, com o seu texto “Uma estreita amizade com o real”, soube transmitir – a partir de alguns fragmentos e detalhes de algumas amizades pinçados do livro Crônicas para jovens – a peculiaridade da escrita da autora, intimista, subjetiva e que não se rende às convenções literárias. A amizade é um tema central na obra de Clarice, sendo concebida como um elemento vital e matéria de salvação; entretanto, em sua leitura refinada, Ana Helena sublinha o quanto ela não se presta à exigência de capturar o real com o significante.
É com deleite que Margaret Couto nos conduz ao mundo dos amigos imaginários em seu texto “A invenção de um amigo”! Seja na clínica psicanalítica, seja nas ficções e testemunhos literários, assim como nos filmes, vamos ler que o amigo imaginário adquire funções muito singulares para cada sujeito, em conjunturas diversas. São amizades inventadas que podem acompanhar uma criança até muito longe em sua vida como ser falante.
Já Olívia Viana nos brinda com sua escrita visual em “Testemunhar a perda: entre o quarto ao lado e o quarto de baixo”, seu comentário sobre o filme O quarto ao lado, de Pedro Almodóvar. Ela ressalta a importância da amizade entre duas mulheres portar consigo a própria solidão. Elas se dispõem, juntas, com uma presença viva e discreta, a acompanhar e testemunhar uma perda. O olhar à escuta, o silêncio respeitoso e a morte anunciada, recebem tons e cores vivas que enquadram o vazio.
A amizade entre duas mulheres também é abordada de modo notável por Bruna Albuquerque, que nos entrega sua escrita a partir da leitura da obra e da série Amiga genial, de Elena Ferranti. Amigas de sempre, essa amizade perdura ao longo de toda a vida delas, com todos os circuitos, rupturas e reenlaces de amódio, alguns sensíveis à palavra, outros não.
Nesses tempos em que impera a exigência de celeridade, satisfação e compreensão imediatas, Laura Rubião nos oferece, com o seu texto “Mares interiores”, a oportunidade de adentrarmos num outro ritmo, noutro tempo: aquele das delícias do silêncio, da pausa e da ausência que nos faz desejar. Ela faz uma apreciação primorosa e delicada das correspondências entre os escritores Murilo Rubião e Otto Lara Resende, extraindo delas um laço de amizade íntima, leal, fecunda e que atravessa os anos. A escrita, um recurso ao Outro, assinala Laura, não opera como remendo ou consolo ao furo que transpassa a existência dos seres falantes.
É em torno desse oco indispensável que os fios se entrelaçam numa amizade sustentável.
Em um movimento antitético, Vinícius Lima nos propõe, com o seu texto “Estrangeiros por toda parte: a inimizade como problema político”, a ler a política a partir da pulsão. De seu encontro com o livro Políticas da inimizade, do filósofo camaronês Achille Mbembe, ele destaca o quanto a destrutividade, fator estrutural das coletividades humanas, é rechaçada pelo ser falante em si próprio e é difundida, irradiada, no inimigo. O inimigo nos habita. Esse elemento estrangeiro perturbador é extraído do texto de Mbembe como esse Outro que eu sou, e Vinícius o faz ressoar com Lacan: Tu és aquilo a quem odeias. O ódio de si deslocado no laço social para o ódio e violência em relação às diferenças faz com que certas populações ou setores sociais sejam passíveis, ele ressalta, de segregação ou aniquilação. É um convite amigo que Vinícius Lima faz ao leitor, o de levarmos esse debate adiante ao nos aproximarmos da obra de Mbembe.
Foi uma experiência esta criação de um rumo com a amizade nos guiando!
Somos gratos a Virgínia Carvalho, coordenadora dos quatro números anteriores de Derivas, e à sua equipe, que foram um farol para nossa embarcação neste momento de transição para a atual Equipe Editorial. Norteados pela Diretora Geral Ludmilla Féres, juntamente com Anamáris Pinto (Secretária/Tesoureira), Fernanda Costa (Biblioteca) e Bernardo Micherif (Cartéis e Intercâmbio), que compõem a nova Diretoria da EBP-MG, e acompanhados pelo atual Conselho Editorial, agradecemos a confiança.
Caros leitores, aportamos!
Agora é o momento de leitura.
Aos que aqui depositarem o seu tempo, seu olhar e sua interpretação, que em nossa Derivas possamos pescar os efeitos.
Referências
AMIZADE. Direção, roteiro, fotografia e montagem: Cao Guimarães. Desenho de som e música: O Grivo. Produção: Aline Xavier. [S.l.]: 88 Arte, 2023. Filme. Produzido por 88 Arte.
LACAN, J. Ato de fundação. In: Outros escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p. 235-247. (Trabalho original publicado em 1964).
LACAN, J. O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; tradução de M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. (Trabalho original proferido em 1972-73).
MORAES, V. de. Soneto do amigo. In: Poemas, sonetos e baladas. São Paulo: Edições Gaveta, 1946.
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Equipe Editorial
Cristiana Pittella (Coordenação)
Ana Helena Souza
Bruna Albuquerque
Daniela Viola
Laura Rubião
Olívia Viana
Vinícius Lima
Revisão: Sílvia P. Barbosa
Edição de Vídeo: Bruno Senna
Conselho Editorial da EBP-MG
Cristiana Pittella
Fernanda Costa
Gilson Ianini
Helenice de Castro
Henri Kaufmanner
Lucíola Macedo
Maria José Gontijo Salum
Sérgio de Castro
Diretoria da EBP-MG
Ludmilla Féres (Diretora Geral)
Anamáris Pinto (Diretora Adjunta Secretária –Tesoureira)
Fernanda Costa (Diretora de Biblioteca)
Bernardo Micherif (Diretora de Cartéis e Intercâmbios)
