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BRUTALIZAÇÃO,

PORNOGRAFIA E

MELANCOLIA NO

USUFRUTO

OBSCENO

DAS IMAGENS

»

Em 2015, não parece demasiado questionar os limites do

que pode ser visto ou dito em público. Portanto, nada

mais atual em tempos dominados por

reality shows,

das

mais diversas procedências nos quais se mostra tudo:

corpos e cópulas, do que se perguntar pelo que, de fato,

está em jogo; pois o excesso no dar a ver parece mais do

que liberdade de expressão.

A pornografia não é uma questão de fácil abordagem.

Facilmente se pode cair nas armadilhas da banalização,

da idealização ou da moralização. Jacques-Alain Miller

(2014)

1

considera que na pornografia há uma troca da

ilusão pela imagem. Ela tornou-se um produto a mais

na série de sintomas regidos pelo imperativo “todos

adictos”, “mais, sempre mais”. Ele fala de um universo de

masturbadores, que já não são responsáveis de produzir

suas próprias fantasias. Nesse sentido, o sexo frágil no

que tange à pornografia é o masculino, que cede a isso de

muito bom grado.

É preciso, sim, fazer a clínica da pornografia no século

XXI, pois ela já bateu há muito tempo às portas dos

nossos consultórios como empecilho ao laço com o outro

para o prazer sexual. Nesse universo, não há nada mais

descartável.

A pornografia não é do domínio do desejo, mas da

desesperança. Vem ocupar o lugar da descrença no

vínculo com o outro. O virtual substitui o real do laço

com o outro. Essa ausência do outro não será preenchida

e mais e mais buscada. O sujeito não faz ideia de que

na realidade perdeu uma causa de desejo e busca-a num

objeto intoxicante tiranicamente presente.

É sob o modo do

pathos

que o adicto é levado a reconhecer

no objeto-pornô aquilo que lhe falta e que representa

sua causa. Objeto colocado no lugar de uma causa em

afânise, reduzido a um corpo ávido que se consome ao

consumir; prisioneiro sem futuro de uma triste pulsão.

Daí o arrebatamento, maneira de extrair-se de uma

solidão de gozo pavorosa. Ao invés de tratar a solidão dos

corpos, ela a aprofunda.

Que corpo é esse que não existe fora da tela? Patologia do

império das imagens? Sem dúvida. Império também do

Um solitário. Última tela antes de cair na dor de existir?

Equivalência sintomática da melancolia?

1 Conferência pronunciada por Jacques-Alain Miller por ocasião do

encerramento do IX Congresso da Associação Mundial de Psicanálise (AMP),

em 17 de abril de 2014. Disponível em:

http://www.wapol.org/pt/articulos/

Template.asp.

Pensar a pornografia, mais do lado da melancolia do

que da mania, é um paradoxo desafiador que instiga.

Melancolia disfarçada, travestida. Há, sem sombra de

dúvida, uma identificação simbólica abalada. Eclipse

da identificação a um Significante-mestre organizador,

substituído por uma pseudoidentificação narcísica de

extremada potência. Sexualidade devastadora, sem

palavras, sem amor, sem ternura. As mulheres se queixam

de abandono e de se sentirem transformadas em restos

desvalorizados e descartáveis.

Nesse império do autoerotismo, haveria um núcleo

melancólico silencioso atravessado por sintomas

perversos? São essas as questões cruciais que não cessam

de ser postas e demandam respostas clínicas claras. Como

tornar a pornografia um sintoma significante é um desafio

presente na clínica há mais de uma década.

A melancolia já foi considerada o mal do século. Será

ela o pano de fundo de muitas adicções à pornografia

conforme nos indica a fala de sujeitos adictos e com

enormes dificuldades no laço social com o outro? É

preciso reexaminar esse campo e retornar aos textos

clássicos sobre o tema em Freud e Lacan.

Ora, no império das imagens pornográficas, o amor é o

grande ausente. Ele não trança a relação do imaginário do

corpo com o simbólico da palavra e o real da morte. Em

seu seminário

De Los Nombres del Padre

, Lacan (2005)

2

compreende a função do amor como meio entre a pulsão

e o desejo. Ensina que ali, onde o desejo foi expulso, o

que resta é o masoquismo como meio para unir o gozo e

o corpo; sob esse véu, a morte se une ao corpo, e isso é,

segundo ele, da ordem da perversão.

Ora, essa questão do meio é muito importante porque

só o meio pode desatar um do outro. O que se passa

na ausência do amor, senão a pura presença da morte,

do gozo e do corpo. “No amor, aquilo a que os corpos

tendem é a enodar-se”.

3

E embora seja impossível, resta

o consolo dos nós do amor como trava contra a dor de

existir, pois o laço social é um laço de acasos do amor.

Nessas modalidades de gozo em que o amor está alijado

não há vínculo, laço social nem com o outro nem com

o Outro, e essa ausência explica o estilo das relações

sexuais entre os jovens: desencantamento, brutalização,

banalização (Miller, 2014).

4

Haveria nesses excessos algo de um ódio de si não

recoberto pela imagem especular que não sendo

simbolizado retorna no Real do corpo?

Elizabete Siqueira

[Analista praticante EBP/AMP]

2 LACAN, Jacques, De Los Nombres del Padre, Buenos Aires: Paidós,

2005.

3 Idem, p. 67.

4 Conferência pronunciada por Jacques-Alain Miller por ocasião do

encerramento do IX Congresso da Associação Mundial de Psicanálise (AMP),

em 17 de abril de 2014. Disponível em:

<http://www.wapol.org/pt/articulos/

Template.asp>.