Editorial Boletim Dobradiça #03

Nohemí Brown Temos em mãos um boletim mais, o terceiro desta nova série e último da presente Diretoria da EBP. A cada Dobradiça, no espaço O Cartel enlaça, contamos com a elaboração de colegas, principalmente AMEs, entorno de uma pergunta que se apresenta como incontornável. Da qual simplesmente não podemos recuar nem ignorar. Neste boletim, no meio do momento em que nos encontramos, no auge de uma pandemia, e diante do fato de que o cartel se mantém de forma viva como dispositivo de trabalho na EBP, com um número crescente de cartéis em funcionamento, as questões que surgem são várias. Com o confinamento o cartel se revelou uma verdadeira máquina de guerra, mas contra o que? Como coloca Gerald Wacjman, “o mundo mudou. As guerras também.”[1] Retomamos o termo usado por Jacques-Alain Miller “cartel como máquina de guerra”[2] que embora seja um termo proposto por Deleuze e Guattari[3], ele toma outros contornos e alcances em nosso campo quando o pensamos articulado ao cartel. O cartel implica certo forçamento para que não se torne simplesmente algo da ordem do solidário, do refúgio, da compreensão, mas que busque dar lugar à divisão de cada cartelizante sob a forma de trabalho. Uma máquina de guerra que leva em conta o mal-estar não para eliminá-lo, mas para tratá-lo e fazer dele uma arma que nos coloque a trabalho. Com relação a esta questão, Sandra Grostein ressalta o valor da proposta de Lacan no que diz respeito ao trabalho em cartel. Ela precisa que se trata de um trabalho de Escola e não um trabalho na Escola. Pontuação importante que nos permite circunscrever a dimensão do trabalho colocado em jogo no dispositivo. Neste sentido, Iorgan Gurgel acrescenta que ele se articula à formação do analista. A formação implica um laço do qual o cartel

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“A favela como solução” – Entrevista com Preto Zezé, por Cleyton Andrade

A comunidade científica e sobretudo a epidemiológica retoma o conceito de sindemia para falar da crise sanitária do novo Coronavírus, muito mais complexo do que “pandemia”, por envolver, como diversos atores de uma crítica social já haviam alertado, que a covid-19 interage diretamente com a desigualdade social, atingido de maneira mais violenta  minorias sociais e étnicas. Somos confrontados com uma ameaça que não reporta apenas ao vírus, mas a uma ameaça naturalizada com a qual convivemos por muito tempo: a desigualdade social. Isso implica que o combate à covid-19 estará fadado ao fracasso caso não se combata, ao mesmo tempo, a desigualdade social e econômica, bem como suas manifestações sob a forma de um racismo estrutural, inscrita no corpo pulsional. Ou seja, não se pode combater o vírus de forma eficaz desconsiderando a desigualdade política dos corpos. Nesse sentido é possível resgatar um dos enunciados fundamentais de um pensador pós -doutor das ruas e das quadras, que algumas vezes já disse que “a favela não é um problema, é a solução” e se propõe a pensar a “favela como potência”. A sindemia reacende a virulência do favelês de Preto Zezé, autor do livro “Das quadras para o mundo”, que começou como lavador de carros, se tornou artista musical construído politicamente nas quadras e no hip hop, e ergueu um nome próprio como modo de intervenção político-pedagógica. Preto Zezé, ativista, rapper, empreendedor e presidente da Central Única das Favelas (CUFA) Nacional e da CUFA Global com sede em Nova Iorque, é o nosso convidado para uma conversa neste terceiro número do Boletim Dobradiça. Cleyton Andrade: Em algumas entrevistas você pôde falar de como surgiu o nome Preto Zezé. Hoje, você como presidente da CUFA, autor de livros, além de um protagonismo em diversas áreas e movimentos sociais, poderia nos contar como

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Cartel – máquina de guerra contra o isolamento

Sandra Arruda Grostein A partir da questão colocada pelos editores de Dobradiça, gostaria de desenvolver uma reflexão sobre o impacto da virtualidade no dispositivo do cartel. Como sabemos, o dispositivo do Passe na EBP não aderiu de imediato ao mundo virtual, foi preciso um tempo para compreender, antes que este voltasse, parcialmente e sob algumas condições, a funcionar no âmbito da Escola. O Cartel, ao contrário, não só se manteve ativo como cresceu muito em número e em diversidade na sua composição. Recorrendo a um breve histórico folheando as revistas Correio, destacaria alguns pontos para levantar ao menos uma hipótese sobre as consequências deste momento para o dispositivo cartel. Na Correio número 10,  anterior à fundação da Escola, JA Miller recupera a famosa colocação de Lacan no Ato de Fundação – “para a execução do trabalho adotaremos o princípio de uma elaboração sustentada num pequeno grupo”[1], este recorte visava ressaltar o fato de que nesta proposição Lacan marca a existência do trabalho de Escola e não um trabalho que pode ser desenvolvido na Escola. Seu argumento neste texto versa exatamente sobre uma mudança no dispositivo onde ele sugere que o cartel original de Lacan era “um órgão de crítica e de controle das produções” e que foi substituído pelo lugar onde se processa um aprendizado. Num outro texto da Correio de novembro de 2006, Stella Jimenez articula o real e o cartel ao dizer que Lacan coloca seu Sinthoma, isto é, o real, à prova de duas maneiras: “na clínica e na Escola, ao confiar o miolo da transmissão à participação em cartéis”[2]. Ela lembra que os cartéis subvertem a ordem simbólica ao apelar ao pequeno grupo sem líder, escapando do “ensino tradicional” em busca da transmissão da psicanálise na relação com o escrito, isto é, o produto de cada

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O cartel …ajuda-a-gente-a-se-ver?

Iordan Gurgel Seguindo a orientação lacaniana devemos, sempre, tomar o cartel como instrumento necessário à formação do analista – para elaboração do saber construído – que serve ao discurso analítico e à Escola. O funcionamento do cartel na Escola de Lacan concerne à formação do analista, em que o saber teórico se traduz no saber-fazer com o real na clínica e a suposição de um laço institucional novo que considere o S (Ⱥ). Se estamos no campo da formação, a análise pessoal, a supervisão e o estudo teórico aí estão implicados e é neste viés que o cartel se formaliza e funciona como instrumento de transmissão. Em um texto anterior recordei a minha primeira experiência de cartel que me produziu um importante efeito de formação e marcou minha entrada na Escola.  O que mais me chamou atenção, quando comecei a pesquisar sobre o tema de estudo e me assenhorar do mecanismo de funcionamento do cartel, foi que a transmissão não se dava pela identificação, tampouco por um modo passivo, estando o cartelizante na posição de aluno. A participação, que visava um produto, não se limitava a estudar e discutir, mas sim considerar a falta, o furo no saber, para fazer aparecer o singular em cada um. Aprendi, desde então, que a proposta de Lacan de se trabalhar em grupo só avançava a partir do um por um, produzindo, assim, uma verdadeira subversão da mestria, do estilo universitário, pedagógico ou educativo, fazendo, deste modo, emergir o real da linguagem. Hoje, instado a falar da minha experiência de cartel em tempos de pandemia, veio, de pronto, uma constatação: nunca, na minha história na EBP, participei simultaneamente de quatro cartéis! Isso foi possível em tempos de pandemia. A extimidade, a psicose, os sonhos e, finalmente, o amor, amalgamaram-se para compor a realidade temática

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O Cartel enquanto esforço de resistência, mesmo na pandemia

Henri Kaufmanner Sempre achei bem interessante os efeitos do encontro de Lacan com a psiquiatria inglesa, e como esta o influenciou na construção do dispositivo de Cartel, o qual, junto com o Passe, são a base de sua escola. Os grupos de trabalho constituídos no esforço de guerra do Reino Unido, baseados nos Grupos Operativos de Bion e seus colegas, permitiram ao exército inglês, não somente a recuperação daqueles soldados que voltavam combalidos da experiência da guerra, como também a construção de seu exército. Estes grupos ajudaram muito a sustentação da resistência britânica na luta contra o nazismo. Portanto, não é mera casualidade que, a partir das medidas de isolamento social durante a pandemia, os cartéis tenham funcionado como um dispositivo de laço de trabalho que não somente se manteve em atividade, como, ao que parece, até se incrementou. Os cartéis mostram-se, assim, como dispositivos de sustentação da Escola de Lacan, de sua persistência, de transferência de trabalho, capazes de enfrentar os diversos obstáculos apresentados diante do Desejo de Escola. Sou o Mais Um de um cartel que se constituiu a partir de uma demanda que eu diria bem particular. Com o tema de investigação Psicanálise e Segregação, seu ponto de partida se deu a partir da procura de 5 jovens psicanalistas, cada uma, a seu modo, integrada aos movimentos antirracismo e que se reconhecem como pretas. Tinham como intenção não somente investigar o tema do racismo a partir da psicanálise, mas traziam também a vontade de cuidar para que esse tema se fizesse mais presente nos espaços da EBP, no caso da Seção Minas Gerais, partindo também da observação de que eram poucos os pretos na frequência das atividades da Seção. Isso ocorreu em 2019 e, no ano anterior, tivemos em Belo Horizonte um Fórum Zadig sobre o racismo,

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 Mais Um, uma função que circula

 Ana Tereza Groisman  O Cartel surge com a Escola de Lacan e se articula a seu ensino desde o início. Lacan propôs a estrutura do Cartel como base de apoio e meio pelo qual executa-se o trabalho de Escola.   O funcionamento do Cartel se aproxima da topologia dos nós, pois, formado o Cartel, cada um de seus cartelizantes é fundamental para que o laço de trabalho se sustente. Cada componente assume para sí a função de enlaçar o grupo ao trabalho de Escola. Nesse sentido, como conclui Lacan, o Mais Um pode ser qualquer Um, desde que seja alguém (Lacan,1980)[1]. Nestes 40 anos que nos separam da dissolução da EFP, muito se teorizou sobre o Mais-um como provocador provocado, uma posição Socrática que “carrega pontos de interrogação e abre buracos nas cabeças”, como bem disse Miller (1986)[2]. Mas, gostaria de me deter na função de enlace entre a Escola e a comunidade que a circunda como uma das facetas dessa função. Em tempos de isolamento social e da dispersão inerente à tal distanciamento, me parece fundamental a tarefa de enlaçar o trabalho de seus membros ao que faz Escola. É função do Mais Um zelar para que os interesses singulares não se massifiquem ou se dissolvam no grupo. Ao mesmo tempo que deve enlaçar o trabalho singular ao coletivo e também possibilitar que o coletivo fure o individual: nem isolados, nem colados. Cada um que se aproxima da Escola parte de uma pergunta, algo que se destaca de sua clínica, de sua análise ou de seu encontro com a teoria, e estaria em busca de parceiros para sustentar e elaborar algum saber sobre o que de início é pura indagação. Isso é fundamental na medida em que mantém a Escola viva e em consonância com as questões de sua

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Cartel: o Uno e o Múltiplo

Cleudes Maria Slongo No ato de fundação de sua Escola, em 1964, Lacan lança uma proposta revolucionária de trabalho que subverte a tendência universal dos grupos humanos, que se estruturam em torno de um líder, a quem seus membros se identificam e a ele delegam uma posição de mestria. O Cartel não se sustenta na crença de um Outro que sabe, da lógica do todo, do ideal. Trata-se de um dispositivo que “conjuga o laço social que permite a produção, com a palavra contingente de cada um, com o traço próprio, com seu sintoma, com seu nome”1. Assim sendo, ele se opõe radicalmente à burocracia dos grupos analíticos cuja visada é o acúmulo de conhecimento científico. Estruturado a partir da fórmula “X+1”, o Cartel se configura a partir da lógica do nó borromeano. O +1, em posição de extimidade, indica uma operação de anodamento dos outros elementos, por meio da transferência de trabalho, estando a seu cargo dar-lhe curso. O +1 representa um lugar vazio, por isto mesmo é uma função intercambiável, podendo ser ocupada por “qualquer um” dos membros. O Cartel está incluído no conceito mesmo de Escola. É o plano político de Lacan para a sustentação do trabalho em uma Escola de analistas. Não há Escola sem Cartel. “Como instrumento de trabalho, ele  serve à formação, à investigação, e como espaço não burocrático, que aloja os encontros e descobertas de cada um”2 a partir de uma experiência de trabalho em conjunto. Tal como o dispositivo do Passe, o Cartel faz a especificidade da Escola na medida em que permite que surja um saber novo, saber do real, do impossível da relação sexual, para ser ensinado. Seu princípio de funcionamento se constitui ao redor de um vazio de saber que funciona como causa. Ao longo de todo o seu

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O Cartel e a Escola

Maria Wilma Faria[1] Os cartéis são algo vivo, que ressoam em nossa Escola. Lacan, referindo-se a eles, utiliza o significante turbilhão, que comporta um vazio em seu centro, em torno do qual algo agita e causa. Os cartéis devem interrogar a Escola, pois trazem em si a tentativa de furar a lógica vertical dos grupos, provocando ação. O cartel pode marcar um antes e um depois na vida do cartelizante. Entra-se com a divisão, uma pergunta; o vazio empurra o sujeito em direção ao trabalho, não sem o seu traço próprio, condição para haver um trabalho que produza algum saber [2]. Uma formação se sustenta na análise pessoal, na supervisão e no ensino. O cartel, como uma das portas de entrada, é vetor da experiência de Escola. Marie-Helène Brousse diz: fazer cartel é questão de formação[3]. Formação implica na singular relação de cada um com a causa analítica, e no modo como se inscreve na Escola de orientação lacaniana, imprimindo as marcas do percurso. Assim, temos no cartel um modo de fazer laço social entre os analistas, mas cada um com seu sintoma, sua solidão. A transferência de trabalho é o motor de funcionamento do Cartel, que permite nesse pequeno número, 4+1, haver um laço, pelo fato de cada um portar seu nome[4]. Se existe um Real em jogo na formação do psicanalista, o cartel poderia ser uma das modalidades de trata-lo. No cartel há a transferência com o texto, entre seus membros, com o Mais-Um, e com a Escola na qual se inscreve. O que se joga no cartel? Como no jogo de xadrez proposto por Freud, temos no início as diretrizes e princípios que definem um cartel, mas o durante, as inúmeras possibilidades de funcionamento, não sabemos como se darão. No horizonte, a dissolução aponta que há um

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O cartel em intensão e extensão da psicanálise

Marilsa Basso O cartel, “órgão de base da Escola”[i], é uma aposta que Lacan instituiu com um ato junto à Fundação da Escola[ii], em 1964. Como alicerce de uma construção, o cartel dá suporte à Escola, a circunscreve e delimita seu terreno, assim como é também sua porta aberta, podendo ser uma entrada assim como uma expansão. Entre palavras, corpos e atos, há no cartel um real que insiste possibilitando a vivacidade de um trabalho de Escola, ele a interpreta e a inova. Em 1967, Lacan diz: “…eu me apoiarei nos dois momentos da junção do que chamarei, neste arrazoado, respectivamente, de psicanálise em extensão, ou seja, tudo o que resume a função de nossa Escola como presentificadora da psicanálise no mundo, e psicanálise em intensão, ou seja, a didática, como não fazendo mais do que preparar operadores para ela”[iii]. O cartel faz da Escola um corpo vivo. São várias atribuições do significante corpo: o corpo biológico, o corpo de um ser, vivo ou morto, o corpo imaginário, o corpo marcado pela palavra, o corpo falante etc. Utilizamos também corpo para falar dos coletivos, do corpo social, do corpo docente, administrativo ou organizacional, entre outras atribuições. Neste sentido, podemos pensar a Escola como um corpo. Todavia, a Escola fundada por Lacan comporta uma particularidade por ter em sua estrutura um funcionamento que não tende a unificações e que tem como premissa o esvaziamento das identificações imaginárias, o cartel, que segue na contramão do grupo, um modo não obstruir o real da experiência. O dispositivo de cartel possibilita uma transmissão do ensino que se dá pela via epistêmica e pela experiência. Um saber que circula entre um dentro e fora, uma produção interna cujo produto é direcionado à Escola e desta aos laços: entre seus integrantes, entre outras Escolas, entre outros

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O que enlaça o cartel

Rosane da Fonte Como o poeta, encontramos uma pedra “no meio do caminho”. Um real contingente se lançou em nossa caminhada. Como contorná-la? O presencial que sustenta o laço na Escola foi provisoriamente deslocado para o epistêmico, pela via do Cartel no qual Lacan precisa a conexão entre o individual e o coletivo. O cartel, na Escola de Lacan, não é só uma ferramenta de trabalho, ele instaura uma política. Não ceder diante do real que está no cerne da Escola e na formação do analista. Sua lógica institui um funcionamento que aloja a questão de cada cartelizante, tendo o Mais Um, como agente provocador. É um dispositivo com tempo limitado, em que a hierarquia e o mestre não vigoram. Cada participante, é representado por um S1, que o designa na diferença, e tem o encargo de produzir um texto em que se revela a singularidade. Aí está o valor do Cartel. Para Guy Briole, os membros do cartel, incluindo o mais-um, participam com seu estilo, traços, maneira de colocar-se e de transmitir dando lugar à diversidade. A psicanálise é apresentada por Lacan como um campo aberto à espera da elaboração teórica dos analistas. Os cartelizantes, com o vazio que lhes concerne, seu desejo e seu entusiasmo, provocam o coletivo Escola, abrindo janelas para novas questões e novos Cartéis. Em tempo do virtual, sigo Marcelo Veras: o isolamento de corpos não implica, necessariamente, isolamento social, a marca do humano é a linguagem, e as redes sociais estão aí para favorecer os encontros. Nessa via, Miller, na fundação da EBP, destaca a importância do Affectio societatis, expressão que põe em relevo o que se faz só e o que não se faz só, sem os outros. Desse modo, a Escola abriga o que se faz só: a análise, o ensino e,

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