Iordan Gurgel
Seguindo a orientação lacaniana devemos, sempre, tomar o cartel como instrumento necessário à formação do analista – para elaboração do saber construído – que serve ao discurso analítico e à Escola. O funcionamento do cartel na Escola de Lacan concerne à formação do analista, em que o saber teórico se traduz no saber-fazer com o real na clínica e a suposição de um laço institucional novo que considere o S (Ⱥ). Se estamos no campo da formação, a análise pessoal, a supervisão e o estudo teórico aí estão implicados e é neste viés que o cartel se formaliza e funciona como instrumento de transmissão.
Em um texto anterior recordei a minha primeira experiência de cartel que me produziu um importante efeito de formação e marcou minha entrada na Escola. O que mais me chamou atenção, quando comecei a pesquisar sobre o tema de estudo e me assenhorar do mecanismo de funcionamento do cartel, foi que a transmissão não se dava pela identificação, tampouco por um modo passivo, estando o cartelizante na posição de aluno. A participação, que visava um produto, não se limitava a estudar e discutir, mas sim considerar a falta, o furo no saber, para fazer aparecer o singular em cada um. Aprendi, desde então, que a proposta de Lacan de se trabalhar em grupo só avançava a partir do um por um, produzindo, assim, uma verdadeira subversão da mestria, do estilo universitário, pedagógico ou educativo, fazendo, deste modo, emergir o real da linguagem.
Hoje, instado a falar da minha experiência de cartel em tempos de pandemia, veio, de pronto, uma constatação: nunca, na minha história na EBP, participei simultaneamente de quatro cartéis! Isso foi possível em tempos de pandemia.
A extimidade, a psicose, os sonhos e, finalmente, o amor, amalgamaram-se para compor a realidade temática do meu estudo nestes diferentes cartéis. Agora me dou conta de que poderia até contar uma historinha tomando estes temas numa sequência lógica que refletisse o momento de reclusão forçada – condição de preservar a vida. Afinal, o fenômeno de estranheza frente aquilo que me é o mais íntimo; algo foracluído que retorna no real; a supressão da realidade para aparecer o desejo realizado e o amor como suplência à não relação sexual, não se configuram como um mosaico de possibilidades frente às leis da natureza que nos impõe o vírus?
Graças às possibilidades oferecidas pela internet – este novo que interfere diretamente na relação entre as pessoas e faz desta crise um diferencial importante em relação a outras pandemias de antanho – foi possível continuar o trabalho em cartéis. O acesso aos computadores e smartphones desloca o sujeito para a esfera dos semblantes por excelência. E viva o Zoom, o Skype, WhatsApp e os google meets da vida! Estes dispositivos, ao possibilitar o encontro virtual, têm a sua serventia, mas, sabemos, não substitui a presença dos corpos – digamos que é o encontro possível apontando a um encontro futuro para realizar o cartel.
Ademais, no ainda hoje, tempo da experiência, pergunto-me se fazer cartel on-line, na linha do olhar, da imagem e da escuta, foi a melhor resposta que encontramos para continuar nossa formação, mas, também, uma forma de enfrentar a solidão frente ao infamiliar do espaço coletivo. É interessante pensar que o funcionamento do cartel é um por um, mas engendra um cálculo, assim como a saída da pandemia exigindo ações que visem o coletivo.
Neste âmbito, estaríamos diante de uma nova forma de usar o cartel como um dispositivo para tratar os efeitos subjetivos produzidos pelo isolamento social? Afinal, não deixa de ser um saber fazer, uma resposta institucional frente aos impasses provocados pela pandemia.
Enfim, há que se reconhecer que a experiência de cartel só consegue se realizar como tal se deixar alguma marca ou algum efeito em quem a realizou. Mas será que o cartel, considerando as circunstâncias atuais, também ajuda-a-gente-a-se-ver?