A comunidade científica e sobretudo a epidemiológica retoma o conceito de sindemia para falar da crise sanitária do novo Coronavírus, muito mais complexo do que “pandemia”, por envolver, como diversos atores de uma crítica social já haviam alertado, que a covid-19 interage diretamente com a desigualdade social, atingido de maneira mais violenta minorias sociais e étnicas. Somos confrontados com uma ameaça que não reporta apenas ao vírus, mas a uma ameaça naturalizada com a qual convivemos por muito tempo: a desigualdade social. Isso implica que o combate à covid-19 estará fadado ao fracasso caso não se combata, ao mesmo tempo, a desigualdade social e econômica, bem como suas manifestações sob a forma de um racismo estrutural, inscrita no corpo pulsional. Ou seja, não se pode combater o vírus de forma eficaz desconsiderando a desigualdade política dos corpos.
Nesse sentido é possível resgatar um dos enunciados fundamentais de um pensador pós -doutor das ruas e das quadras, que algumas vezes já disse que “a favela não é um problema, é a solução” e se propõe a pensar a “favela como potência”. A sindemia reacende a virulência do favelês de Preto Zezé, autor do livro “Das quadras para o mundo”, que começou como lavador de carros, se tornou artista musical construído politicamente nas quadras e no hip hop, e ergueu um nome próprio como modo de intervenção político-pedagógica. Preto Zezé, ativista, rapper, empreendedor e presidente da Central Única das Favelas (CUFA) Nacional e da CUFA Global com sede em Nova Iorque, é o nosso convidado para uma conversa neste terceiro número do Boletim Dobradiça.
Cleyton Andrade: Em algumas entrevistas você pôde falar de como surgiu o nome Preto Zezé. Hoje, você como presidente da CUFA, autor de livros, além de um protagonismo em diversas áreas e movimentos sociais, poderia nos contar como esse nome próprio foi fundado e o efeito político dele.
Preto Zezé – O racismo no Brasil, ele atua de maneiras diferenciadas. No caso do meu estado, ele atua dizendo que não existem negros. Isso gerou um prejuízo muito grande, porque, só recentemente, é que documentos oficiais do museu de história do Ceará, a institucionalidade, começou a assumir que aqui existem negros sim. E aí nós começamos a inverter essa lógica e eu coloquei o termo Preto Zezé para gerar um constrangimento pedagógico nas pessoas, para elas começarem a refletir sobre isso. E daí acabou que o nome Preto se transformou em nome próprio na medida em que a gente foi transformando o estigma em carisma e a vergonha em orgulho. E é feito político, tá sempre alguém rememorando: “opa, mas Preto? Peraí, mas Preto o quê? É Pedro? Não, não…”, o cara não quer chamar de Preto porque pergunta como é que chama, então sempre traz o tema para um ambiente que o racismo não quer, o ambiente público, né, o debate público, tira esse debate do subterrâneo.
Cleyton Andrade: Você já disse dos pós-Doutores na Rua, dentre os quais você faz parte. E que os pós-Doutores na Rua produzem suas próprias teses. Nesse sentido eu queria te perguntar, no “favelês” o que é a “Rua”? E a partir daí, o que é a “Quadra”? Fazendo menção ao título do seu livro…”Das quadras para o mundo”.
Preto Zezé: Quando se fala rua, favela, é um conjunto de valores, de vivências e de inteligências desenvolvidas para sobreviver num país desigual e injusto, como o Brasil, que tem 521 anos, mas teve 383 (anos) de escravidão. E onde as populações desses territórios, que tem na rua a sua arena, na favela o seu habitat e a cor negra majoritária… essas pessoas foram relegadas a um ambiente de invisibilidade, a um ambiente de segunda classe, a um ambiente subalterno no imaginário popular devido a esse nosso histórico de escravidão. Então, quando se fala rua, favelas, esses ambientes, a gente tá falando de uma inteligência para sobreviver nessa realidade. Por isso que são pós-doutores em tudo de ruim que acontece, mas, ao mesmo tempo, são intelectuais orgânicos da vida real que, embora estejam longe dos bancos universitários, as suas colaborações para o desenrolar, para o “se virar” na vida real, elas têm tanto ou mais valor do que o que é elaborado pelos cientistas sociais e acadêmicos.
Nesse sentido… nesse sentido, a quadra é a minha escola, “né?”, é a minha universidade da vida, e a CUFA, ela já é o nosso centro de preparação mais sofisticado, é o nosso Vale do Silício das boas ideias, das boas ações, de muita coisa muito bacana. Então é nisso aí que a gente tá colocando que a favela ela não é só carência, ela é potência.
Cleyton Andrade: Existem críticas aos movimentos sociais que se baseiam na concepção de que são movimentos identitários. E que, nesse sentido, seriam apoiados em bases frágeis. Da minha parte, penso que são o contrário. Em resumo, seriam uma resistência ao identitarismo que lhes atribuem, à revelia, identidades e formas específicas de existência. E tanto o movimento negro, LGBT, feminismo, para citar apenas alguns, gritam que a identidade que lhes dão, não os definem. Ele seriam, na verdade, não pautas identitárias, mas sim um golpe no identitarismo. Queria te ouvir e saber o que você pode nos dizer sobre os movimentos sociais.
Preto Zezé: Primeiro é preciso reconhecer que todas as lutas de todos os grupos que se sentem oprimidos elas são legítimas. Sobre esse debate identitário, a maioria da população nem sabe o que é que se trata disso. Isso é mais um debate de grupos, muito pequeno inclusive… muito restrito, não é nem consenso geral entre os próprios movimentos isso, mas se quiser falar em identitarismo, tem que falar dos brancos, “né cara?”, o branco é identitário, a teoria, inclusive dos movimentos sociais, é uma teoria identitária e identificada com a Europa, tendo como base os seus ideólogos e teóricos, essas contribuições intelectuais. Eu acho que os grupos tão querendo é pluralismo, né?, que todos sejam reconhecidos na virtude das suas diferenças e que o fato de ser diferente, de ter sua identidade, não seja utilizado ou transformado em desigualdades. E esse é o grande desafio: encontrar esse ponto comum de respeito à identidade de cada um, de afirmação da vida e de enfrentamento das opressões, sejam quais forem as que ocorram.
Cleyton Andrade: Por fim, gostaria de inverter a segunda questão que te fiz. Que tipo de tese ou pautas, as ruas, os movimentos sociais, produzem material e concretamente? Quais as palavras-chave ou palavras de ordem que as ruas e movimentos sociais produzem?
Preto Zezé: Ah… Aí é uma resposta do milhão (risos). Pergunta do milhão, porque os movimentos produzem milhares de palavras de ordem, os movimentos se auto-organizam produzindo suas agendas e pautando suas agendas, “né?” e… produzem também as suas linguagens, os seus dialetos, as suas estéticas, “né?”, então os movimentos estão produzindo muita coisa ao mesmo tempo, “né?”. E também junto isso as suas teses para existir, para viver, para ser feliz e para conquistar seus objetivos e as suas agendas.