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RESSONÂNCIAS DA SEGUNDA PREPARATÓRIA DA II JORNADA DA SEÇÃO NORDESTE E O ANALISTA EM TEMPOS DE EVAPORAÇÃO DO PAI?

RESSONÂNCIAS DA PRIMEIRA PREPARATÓRIA DA II JORNADA DA SEÇÃO NORDESTE E O ANALISTA EM TEMPOS DE EVAPORAÇÃO DO PAI?

Na noite de 16 de agosto de 2022, realizamos a nossa segunda atividade preparatória para a Jornada anual da EBP-Seção Nordeste. As coordenadoras do Eixo 2, Claudia Formiga e Margarida Assad, apresentaram o tema “O Analista frente ao discurso de ódio segregador e a nova lógica coletiva”, juntamente com seus convidados Suele Conde e Nelson Matheus, que contribuíram com a apresentação de um vídeo que alimentou boa parte do debate, uma vez que o conteúdo dele permitiu abordar questões da proposta do Eixo em relação ao ódio, segregação e a lógica coletiva.

Cláudia Formiga introduz sua fala considerando esta atividade menos como lugar de produções de respostas prontas sobre os fenômenos de manifestações de ódio segregador e mais como um momento de provocação ao trabalho, ressaltando a importância de podermos extrair das situações da clínica e da cena do mundo os pontos que nos instigam à produção de trabalhos para a II Jornada.

Da leitura do argumento do eixo, Claudia escolheu trazer para essa conversa algumas notas que fez sobre o tema da segregação, que destacou como central nesse eixo de trabalho, a partir da leitura de algumas passagens do texto de Lacan.

A primeira delas, do texto de 1968, “Nota sobre o pai”, no qual Lacan menciona o termo “evaporação do pai”, situando a segregação como sua cicatriz. Ou seja, do declínio do Nome-do-Pai enquanto função se produz uma mutação na ordem simbólica que deixa uma marca: a segregação no lugar vazio daquilo que se evaporou.

Claudia destaca que a noção de segregação é utilizada por Lacan, ao longo do seu ensino, para tratar dos efeitos que o discurso produz no laço, tanto no que diz respeito à comunidade analítica quanto como processo resultante de uma política de mercado.

A segunda se encontra na “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola”, onde Lacan introduziu o conceito de Segregação. Nela ele antecipa os efeitos do discurso da ciência sobre os sujeitos, evocando o campo de concentração nazista como um precursor do reordenamento das agrupações sociais feito pela ciência e, em especial, a universalização que esta introduz.

A terceira nota se encontra no Seminário 17, “O avesso da Psicanálise”, outro texto citado por Claudia. Ela localiza, no contexto das elaborações de Lacan sobre os discursos, a interpretação do discurso do mestre contemporâneo a partir dos discursos do capitalismo e do da ciência. Lacan vai atribuir a ascensão da segregação e as modalidades de segregação a uma mutação do discurso do mestre, que, sob o domínio da ciência, por meio das cifras e das tecnociências, transformaria os sujeitos em dados cifrados, tendo como efeito a dessubjetivação.

A partir dessas passagens, Claudia destaca que, foi se utilizando das formulações de Freud em sua leitura do mal-estar de sua época, que o tema da segregação, em Lacan, foi vinculado a sua tese dos ideais universalizantes promovidos pelo discurso da ciência, tomada tanto no nível do sujeito quanto das agrupações, como efeito da universalização.

Claudia salienta ainda, no Seminário 17, no capítulo em que trabalha os mitos de Édipo e de Totem e Tabu, um questionamento de Lacan sobre a fraternidade, em que ele considera “ridículo o gasto excessivo de energia com essa ideia obsessiva da fraternidade”. Ela nos diz que, a partir da ideia freudiana da fraternidade entre irmãos como resultante do assassinato do pai da horda, Lacan vai dizer que tal fraternidade poderia recobrir outra coisa: “Só conheço uma origem da fraternidade que é a segregação”.

Com essas três referências tomadas do texto de Lacan, Claudia se propõe a uma digressão a partir de uma reflexão sua em um trabalho que escreveu para o EBCF sobre o tema da violência contra as mulheres e o feminicídio. Ela se pergunta se as referências que serviram para a sua pesquisa sobre o ódio dirigido às mulheres conviriam a uma leitura de outros eventos que hoje trazem à cena do mundo a manifestação de ódio no seu aspecto segregador, a exemplo do que há poucas semanas pautou os noticiários, referindo-se ao caso do assassinato de uma pessoa na sua festa de aniversário, por motivo de intolerância política.

Claudia destaca, no texto de Miquel Bassols “Transtornos de linguagem e segregação”, a distinção que este faz entre os dois sentidos de segregação em Lacan. Um primeiro, a segregação estrutural inerente ao fato da inserção na linguagem, se fundamenta na argumentação de que os sujeitos e os discursos se constituem por intermédio do significante-mestre (S1) e dos singulares modos de gozo; O segundo sentido da segregação, diz Claudia, refere-se à dita segregação social, que se dá no plano do vínculo do sujeito com os outros e diz respeito aos efeitos da segregação que perpassam a relação de um sujeito universal constituído pelo discurso da ciência e a exigência de mais-de-gozar. Esse imperativo tem como resultado a constituição de um sujeito que percebe o gozo diferente do seu como um gozo a menos para si e, por isso, segrega o diferente. O resultado disso é a produção de “campos de concentração de gozo”, onde sujeitos tornados iguais recusam a segregação estrutural, recusando também a singularidade.

Qualquer fenômeno segregativo, diz Claudia, deve considerar o fenômeno descrito por Lacan como estrutural na psicose: “aquilo que fica fora do simbólico retorna no real”. O princípio freudiano de uma exclusão primária, do rechaço originário de um objeto ou de um gozo. É uma operação fundamental para entender qualquer segregação, assinala Claudia, citando Bassols: “E o modo como cada um responde a essa segregação estrutural está na base da segregação social. A segregação social é uma resposta a essa segregação estrutural. O rechaço a esse Outro que carrego em mim em posição de extimidade, é o que está na raiz do racismo”.

Claudia acrescenta ainda que, em certa medida, essa distinção (que articula individual e coletivo) nos ajuda na leitura de alguns fenômenos de intolerância, a partir da noção de estranheza, que Lacan situa em lugar do gozo mais íntimo, q ue é opaco ao sujeito. E finaliza, apontando: “É esse gozo estranho, gozo mais íntimo, porém opaco a uma explicitação pela linguagem, que frequentemente é atribuído ao outro, que passa a ser tomado como inimigo mortal”.

A partir das pontuações de Claudia sobre a segregação, Margarida Assad fala do ódio como sua raiz, pensando na pergunta da II Jornada. E o analista? E o analista frente a essa evaporação do pai? Quais as consequências da segregação e do ódio ou, como partir deles, para pensar na possibilidade de novos laços? Como essa queda da função paterna pode trazer esses efeitos de ódio e segregação?

Retomando a questão do ódio como parte da constituição do sujeito, Margarida nos lembra Freud, pontuando que ele, no seu artigo sobre As pulsões e seus destinos, fala do ódio como uma primazia, o que não deixa de chamar a atenção do que o fez pensar assim. Se Freud aborda o ódio a partir das pulsões, Lacan o traz para o campo do Ser. Para Freud está relacionado ao eixo prazer-desprazer, apontando Margarida que, na lógica freudiana, o que causa desprazer é expulso e o que dá prazer permanece, marcando assim a relação projeção e introjeção.

Outro ponto trazido também a partir de Freud diz da relação amor e ódio deslocados para o ego e os objetos, pois, como lembra Margarida, para Freud as pulsões não odeiam.

Já para Lacan, nos diz ela, essa polaridade é colocada em outro registro, trazido no seminário 20 como amódio – amor e ódio juntos – sendo que o ódio é colocado por ele como parte de uma segregação primária daquilo que o eu não consegue absorver, embora lhe pertença.

Essa segregação, tomada como estrutural, lembra Margarida, vem sob a forma de ódio: “o eu odeia o outro que tem algo que é seu”, o que faz relação com o que podemos tomar a partir do narcisismo das pequenas diferenças. Freud dirá assim: “o que eu odeio no outro é algo que está em mim e que eu não tendo como nomear, coloco no outro”

Margarida cita Oscar Ventura: “ A matriz segregativa que veicula a identificação é antes de mais nada contra Um, contra si mesmo, é um modo de recusa do objeto ao qual se está identificado, e que é em última instância, um mesmo. Um mesmo subjetivado como um resto inomeável, apanhado nas redes do Outro. E o que se segrega é o gozo que está encapsulado na identificação, que é o alimento privilegiado do ódio”

Tanto Freud como Lacan abordam o ódio. Em Freud ele é projetado, e em Lacan é segregado. Como significante segregado, diz Margarida, a gente faz uma cumplicidade entre aquele que segrega e que é segregado.

Agora, o que isso tem a ver com os laços sociais? É o que questiona Margarida. Por que colocamos segregação no ódio e não nos laços sociais? É aí que reside a essência da presença do analista, seja frente ao sintoma do sujeito, seja frente aos grupos, os coletivos ou às tribos. Se esse ódio se enraíza nas identificações, o que é que pode o analista? Como atravessar as identificações, para esburacar nelas os semblantes que enrijecem as parcerias, injetando segregação, disputas e, principalmente, intolerância e o ódio?

Ao perguntar sobre a presença do analista frente ao ódio, Margarida destaca que, no último Enapol, trabalhamos o tema do Novo Amor e pergunta: o que Lacan nos diz sobre o Novo Amor? Ela traz que, no seminário 24, Lacan fala que o insucesso do saber ou o insucesso do inconsciente é o amor. E nos deixa as questões: o que tem esse saber e esse amor se a gente pode partir da concepção do ódio como segregação do gozo? Como pensar que o amor pelo saber possa ser uma guia que o analista tenha a oferecer, levando-se em conta um outro patamar, além de uma defesa contra o ódio?

Suele destaca que o tema da II Jornada da Seção Nordeste evoca dois significantes, pai e evaporação, diante de um terceiro, o analista. Todos na mesma frase. O eixo E o analista frente ao discurso de ódio, convoca o analista frente a esse tempo em que os discursos de ódio e segregação se fazem ver e ouvir por todo o globo. Apesar da aridez dessa temática, diz Suele, conversar com Nelson sobre alguns acontecimentos que marcaram nosso país e demais localidades no globo, permeou suas discussões e questionamentos. Nelson conseguiu transformar em imagens suas conversas para a preparação dessa noite. Foi um trabalho de transformação e tradução das imagens, das palavras e das letras. O vídeo mostra da decapitação de um rei até as revoluções, as evoluções e o progresso. Da realeza, o luxo, resgate, vida. Pessoas ocupando as ruas, lutando, cantando, bradando. Imagens e palavras se misturam fazendo vibrar, pois as pulsões são do corpo, eco de que há um dizer. Para falar disso, Suele destaca do Curso de Miller “Um Esforço de Poesia”, justo no capítulo sobre “Tempos Modernos”, o momento em que ele nos interroga acerca da prática da psicanálise: “Com que condição é praticado a via de Freud? Acaso é hoje? Poderá ser amanhã?”.  Assim, coloca-nos a questão da modernidade, do progresso, da homeostase, em tempo da lei de ferro dos novos tempos modernos. Suele continua falando que Miller nos dirá que o desejo, em efeito, não é democrático. O valor da democracia como lugar vazio falha em situar o sujeito da democracia como sujeito barrado ($), o qual implica excluir tudo o que é da ordem da particularidade dos gozos. Miller avança: “sabemos por Freud, sabemos por Lacan, sabemos pelo dia a dia que quanto mais é vazia a democracia, mais se converte em deserto do significante do gozo e correlativamente maior é a condensação de gozo. Quanto mais desafetivizado está o significante, quanto mais avança o significante puro na forma do direito da democracia igualitária, da mundialização do mercado, correlativamente aumenta a destruição e a extensão dos massacres e das catástrofes. Não é apenas porque os meios de destruição se tornam superiores, senão mais bem pelo eclipse que avança. Quanto mais avança o reino do significante puro, maior condensação se produz do lado do gozo”.

Suele conclui deixando algumas interrogações: como pensar isso hoje quando estamos diante da ameaça a toda forma de democracia com a crescente de ressurgimento de governos totalitários? O que Miller quer bem dizer quando fala de democracia vazia? Se pensarmos na liberdade dos mercados comuns, que sentido a palavra “democracia” tem hoje?

Para Nelson Matheus, trata-se de um tema denso, no qual não foi possível um raciocínio unilateral, porque a própria interpretação de Lacan, de que a segregação estaria na raiz dessa evaporação do pai, é algo que suscitou muitos questionamentos. Numa leitura apressada, tenderíamos a pensar, por exemplo, em ressuscitar o pai como a resposta da cultura em torno de governos totalitários, nos diz Nelson.

Em Televisão, Lacan dá tanta ênfase quando fala em segregação e racismo que chega a dizer “eu não estou brincando”. Para demonstrar as razões de Lacan nessa passagem, Nelson nos fala de um caminho perigoso, porque se a resposta vem pelo coletivo, chega numa tentativa de ressuscitar o pai que está evaporado.

Seguindo em sua fala, Nelson pontua que outro desafio para pensar sobre o ódio e a segregação é de tentar localizar o que, no laço social, poderia ser falado como lugar do intérprete da civilização. O próprio Lacan situa o analista nesse lugar. Dessa forma, como o analista se situa em nossa época? Qual o efeito, por exemplo, das palavras hoje, quando exatamente a palavra hoje entra em declínio? E se os efeitos das palavras entram em declínio, como interpretar?

Outro ponto levantado por Nelson diz respeito à transferência, fazendo interlocução entre os laços sociais, mas não sem considerar a prática clínica. Qual o lugar da transferência nesse campo onde o pai se evaporou, e em que, ao mesmo tempo, o capitalismo foraclui as coisas do amor? É o discurso dominante, como Miller nos diz em entrevista recente, apontando que Lacan conseguiu antecipar a dominação do discurso capitalista.

Em relação ao vídeo apresentado, Nelson comenta o destaque feito por Suele, sobre um evento bem crucial na história do ocidente. A partir do fato do rei Luiz XVI ser guilhotinado, inicia-se uma série de revoluções para acabar com a monarquia na Europa, pontapé inicial em prol da república, na qual o rei é guilhotinado como algo inimaginável nessa época. Inclusive, no momento em que o rei está sendo guilhotinado, seguram a cabeça, e o povo grita: “viva a república”! De alguma forma, acrescenta Nelson, parece que esse momento tem uma nova lógica que passa, aos poucos, a se instalar. Se é para o pior, … Ou pior, conclui que nesse caso caberia uma interpretação, no caso da lógica coletiva.

Marcando o percurso da história que o vídeo resume, vê-se, segundo Nelson, fatos onde a palavra pôde tomar lugar de um outro jeito, a exemplo de fatos mais recentes, como nos Estados Unidos, com a morte de George Floyd, mas também no Recife, quando o menino Miguel caiu de um apartamento. Fatos que mobilizaram e mobilizam até hoje uma série de revoltas com efeitos, porque não é sem efeitos, não são como espumas jogadas ao vento. Há efeitos, enfatiza Nelson, citando também outro movimento como o das mulheres chilenas que se juntaram e acusaram o governo de seu país, os juízes, a polícia e a política, dizendo: “o estuprador é você”. Um movimento que ultrapassou o Chile, espalhando-se pelo mundo todo como no Brasil, França, Itália, Espanha e Portugal.

Nelson conclui chamando a atenção para a lógica pautada no universal, dizendo ser curioso, pois o próprio Lacan, em sua apresentação aos psiquiatras em 1967, já apontava que a segregação é efeito da universalização. Ou seja, ao mesmo tempo que há um universal, sua própria lógica produz também uma segregação. Ponto importante para não cairmos na lógica do universal, para não seguirmos nem na nostalgia do universal nem na lógica da existência do pai. Por outro lado, lembra Nelson, isso não quer dizer que não presenciamos todos os dias novos universais – no plural – uma proliferação de universais. Então, parece-me, diz Nelson, que não estamos tão desorientados assim. Agora, como dar conta disso na clínica e na civilização é uma questão que fica.

Nosso debate acerca das falas das coordenadoras do eixo e dos convidados centraram a discussão, antes mesmo de iniciar o debate, no que o vídeo nos revelou em relação à montagem das imagens, a partir das conversas prévias de Nelson e Suele. Tomando a palavra, Suele ressalta que o vídeo nos remete às letras, aos cartazes, às palavras (como por exemplo, o brado das mulheres do Chile), numa tentativa de pôr ordem nas palavras, como uma ordem que pudesse constituir outra lógica, um empuxo ao sentido. Suele também nos diz que as imagens do vídeo parecem querer substituir as palavras, estas que estão nas teses, nos vídeos em geral e neste apresentado por Nelson, que tem um impacto, pois traz a dureza. Ela aponta a música como algo que poderia trazer um suportável às imagens, não no sentido imaginário, mas alguma coisa pela letra.

Na sequência, algumas questões vão surgindo, estabelecendo-se uma conversa com os coordenadores e os convidados.

–  Luis Tudanca, da EOL, traz uma questão muito interessante sobre a política da psicanálise ser a política do sintoma. Ele destaca disso a via do sentido do sintoma e o tratamento que se dá a ele na psicanálise pura que leva ao passe. Sobre a psicanálise aplicada podemos pensar como esse sintoma se insere no social. A partir disso, Tudanca fala que a posição do psicanalista se diferencia da política, uma vez que a função desta é buscar o sentido. Sendo a via do sentido, mesmo que a psicanálise tenha algo a dizer, sua política é colocar o sem sentido, é colocar a dimensão do real, ou seja, o que fica fora.

– Outro ponto colocado por Tucanda, ainda dentro dessa lógica, é que o psicanalista é um meio dizer porque evita a denúncia, já que denunciar reforça o denunciado. Então, esse meio dizer aponta para o vazio e isso ajuda muito a pensar como a psicanálise entra nesse diálogo com a política, quando ela traz a dimensão do não sentido, do meio dizer.

– Pelo que Margarida apontava, o que essa relação com o ódio e a segregação, hoje, poderia apontar para o laço em relação ao amor? Lembro de um texto de Simone Souto sobre o autoerotismo em que ela fala do autoerotismo não ser o absoluto. Pensar o amor pelo que Nelson fala pelos efeitos da transferência. Como entender essa via do ódio pelo autoerotismo que não é absoluto, se escorrega algo que escapa para o campo do Outro? As questões que foram me ocorrendo numa vertente do significante do gozo, da metáfora. Nelson fala da lógica do universal, que parece dialogar com o que Suele traz a partir de Miller sobre a democracia vazia. Essa universalidade não parece exatamente uma desorientação. Ocorreu-me pensar se o laço tenta localizar, condensar nesse campo de concentração do Outro, alguma coisa que está foracluída.

– Instigante o que vocês estão proporcionando hoje. O eco, o fato de que há um dizer que toca o corpo. Gostaria de conversar com vocês a partir do que me vem, como a psicanálise está do lado da democracia porque, senão, o pior – titulo do seminário 19 – Ou pior. Como Nelson diz, o quanto isso não é a nostalgia do pai? E uma outra coisa que vocês trazem em vários elementos da fala de vocês, essa precisão do texto de Claudia, dessa diferença, me ensinou muito a pensar sobre essa segregação estrutural e sobre essa segregação social, que Bassols, Tarrab e tantos outros trazem. E essa perspectiva do amor que Margarida aponta, que Suele traz também com essas imagens que não devem ser lidas simplesmente como imagens, mas nessa dimensão de uma materialidade que toca o corpo. Quem não foi tocado por esses acontecimentos no mundo e no Brasil também? Eu gostaria de pensar um aspecto a partir do texto “Psicologia das massas e análise do eu”, ou seja, aquele esquema que Freud traz para pensar sobre esse novo laço coletivo, como essas manifestações que vêm a partir do povo, mas que toca na raiz da segregação. Pensando no lugar do ideal, desse Outro de exceção, o que vocês nos provocam hoje é pensar que não há mais essa sustentação. Algo se evaporou desse ideal, desse lugar que o pai estava, que o líder estava. É o mais-de-gozar, é o que Claudia traz quando fala dessas ilhas de gozo. Como é que se aciona esse mais-de-gozar e aí vem um laço que faz um certo coletivo? Fiquei pensando isso, que retomo a partir dessa questão que Nelson traz: se o analista se situa como um intérprete na civilização, como ele pode sair de uma leitura da segregação estrutural, que também é fundamental nesse discurso dessa parceria com a civilização, e pensar um pouco aí a segregação já como efeito? Efeito, por exemplo, do neoliberalismo. As falas de vocês nos provocam a pensar sobre isso. Isso me instiga. Esse x que está fora é esse x que tem a ver com essa segregação estrutural. Com esse mais-de-gozar que o próprio social toma e o neoliberalismo joga? Inclusive, transformando questões que poderiam não entrar na massificação, modificando isso em objetos de mercado.

– O vídeo me impactou muito. A música amacia um pouco o impacto, mas a ideia de poder, ainda, falar do coletivo, também alivia. Fiquei pensando nessa questão que Margarida traz do coletivo, da massa dentro dessa lógica do discurso ligado ao ódio. O ódio, ele é discursivo. O que extrapola é violência? Como disse Margarida a partir de Freud, as pulsões não odeiam. Lembro de um texto de Miller em que ele aborda amor e ódio como Eros. A violência é pulsão de morte. Nesse vídeo produzido por Nelson, ele consegue trazer essa questão. O que impacta nesse vídeo, o que angustia, mas também anima, é saber que há manifestações, sustentadas na ordem do discurso, que se conhece como movimentos de resistência. Você pode falar um pouco, se você pensa esse coletivo como uma forma de discurso, mesmo que esteja no ódio? Pelo que você estava dizendo o ódio é estrutural, podemos senti-lo, mas não para sair matando o outro por aí. Então acho interessante essa distinção ente ódio e violência que Miller nos traz, para distinguir essa visão do senso comum que traz o ódio, onde, na psicanálise, lê-se pulsão de morte.

Após as provocações trazidas pelas coordenadoras do eixo e dos convidados da noite, além das questões levantadas pelo público, Claudia retoma, a partir da pontuação de Suele, as manifestações de 2013, ressaltando que uma das características delas eram as de não estarem ligadas nem a partidos nem a líderes políticos, lógica que impera nessas agrupações sociais.

Em relação à segregação, diz que esta está referida por uma mutação no discurso e, tomando Marie-Hellen Brousse, fala do sujeito que se dirigia ao saber, sujeito dividido, sendo substituído pelo puro sujeito da ciência, que, sem questão, responde pelo algoritmo.  Assim, pergunta Claudia a partir do vídeo exibido: o que nos traz esses coletivos quando não há cabeça, como eles se originam hoje? Como se fazem as agrupações hoje?

Em relação à reação à denúncia e ao denunciado, aponta que a característica de quem está segregado é não ter dívida com o segregador e, como não tem dívida, vira uma potência. O segregado, diz Cláudia, ameaça a ordem por esta fora. Pensar isso em termos do gozo é pensar no que está, então, desordenado, pois não tem mais uma ordenação, nem um ordenador, ideia que bem força a lógica da denúncia que reforça o denunciado.

Sobre a questão do ódio e esses novos coletivos, Margarida aponta que nessa nova configuração não há como resgatar esse pai, não há mais algo para fazer ressurgir esse pai, nem ficar nesse saudosismo. Nesses lugares estão surgindo os coletivos e as novas formas de enlaçamento. Laurent no seu texto da última Opção Lacaniana diz algo muito curioso: que o crime fundador não é o assassinato do pai, mas a vontade de assassinar, um gozo que eu rejeito. Assassinar aquele que carrega o que se fundamenta pela segregação. Esses movimentos em que se diz “o estuprador é tu”, “vidas negras importam”, de alguma forma promovem, me parece, um outro enlaçamento, exatamente tentando escapar desse ódio segregador, tentando fazer um novo laço. Eu acho que o trabalho analítico não é reforçar isso enquanto universal, universal dos negros, universal das mulheres, mas encontrar algo nesses coletivos. Lembrando Marcus André, ele traz uma expressão muito interessante, “um significante vazio”, esse meio dizer que aponta para o vazio como dito hoje aqui. Esse significante vazio que pode estar ali enlaçando aquele coletivo, sem necessariamente constituir esse universal. Acho que foi bom você lembrar isso, porque penso que os coletivos estão aí como alternativas para a segregação.

A partir da conclusão das falas das coordenadoras e dos convidados, surge uma outra questão:

–  Duas coisas que vão na direção do que Margarida traz, mas também do que Claudia traz no início sobre a questão da fraternidade como obsessiva. A gente encontra isso em Freud, todo questionamento dele em relação ao mandamento, o mandamento do amai uns aos outros, da questão do narcisismo das pequenas diferenças como aquilo que rateia, aquilo que impede a realização desse mandamento. Porém, a fraternidade persiste obsessivamente, me parece, como esse ideal humano e, aí na fala de Nelson, ele destaca a segregação como um efeito desse universal. Ocorreu-me que a proliferação de universais é o que a gente assiste hoje, inclusive a proliferação daquilo que é segregado. Esse é o paradoxo.  Porque aquilo que é segregado é reintroduzido, não sei se pela obsessão da fraternidade, porque de fato a segregação é algo do insuportável para o segregado, obviamente. Mas eu fiquei pensando também se a aposta no novo laço social e em novas formas de enlaçamento a partir da segregação, mas que não reforça a segregação – o que é segregado retorna no real. Essa obsessão me pareceu curiosa para pensar um pouco mais sobre.

A partir das provocações deixadas por esta atividade e, transmitidas com muito entusiasmo, as coordenadoras do eixo convidaram todos à produção de trabalhos para a II Jornada, sugerindo questões e elaborações sobre um tema tão caro aos analistas e à psicanálise, tanto em sua prática clínica quanto em sua forma de ler a cena do mundo.

 

Por Sandra Conrado
P/ Comissão Científica

Referências Bibliográficas
BASSOLS. M. O bárbaro, transtorno de linguagem e segregação. Opção Lacaniana On line Nova serie ano. 9. nos. 25 e 26 março e julho. 2018
LACAN, J. O sinthoma, seminário 23. Jorge Zahar editor: Rio de Janeiro, 2007.
Lacan, J. Os corpos aprisionados pelo discurso. In: J. Lacan. O Seminário, Livro 19 …ou pior. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2012, p. 227.
______ Televisão”, Outros Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2003, p. 533.
______ “Nota sobre o pai”. In: Opção Lacaniana, n. 71, p. 7.
______ “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola” In: Outros escritos. Tradução Vera Avelar Ribeiro. Zahar editor. Rio de Janeiro. 2013.
______ “O Seminário Livro 17. O avesso da Psicanálise”. (1969-70). texto estabelecido por jacques-Alain Miller. Zahar editor. Rio de janeiro. 1992.
MILLER, J. A. Tiempos modernos. In.: Un esfuerzo de poesía. Buenos Aires: Paidós, 2016, p. 43 e 53
VENTURA, O. Amor e Laço Social- PDF. XXIV Jornada EBP-MG. Mutações do Laço Social.

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