Elisa Alvarenga
Na última lição do seu Seminário …ou pior, em 1972, Lacan enuncia uma de suas antecipações sobre o racismo, que se estendem desde a Proposição de 67 até Televisão, em 1974. Nessa ocasião, Lacan nos surpreende ao dizer que, “quando voltamos à raiz do corpo, se revalorizamos a palavra irmão, … saibam que o que vem aumentando, o que ainda não viu suas últimas consequências, e que … se enraíza na fraternidade do corpo, é o racismo. Vocês ainda não ouviram a última palavra a respeito dele” (Lacan 1972/2012, p. 227). Eric Laurent comenta que a idolatria do corpo tem consequências totalmente diferentes do hedonismo narcísico ao qual se acreditava limitar essa “religião do corpo” (Laurent, 2013, p. 15).
De que corpo se trata aqui? Lacan, nos anos 70, introduz a letra como tratamento do gozo de um corpo que não é mais especular, mas furado (Lacan, 1974/2014, p. 18). É nesse corpo como superfície topológica sobre a qual se inscreve o impacto de lalíngua que virá se alojar a escrita que introduz um litoral, uma borda direta com o gozo. No enxame de significantes no qual banha o falasser, não sabemos porque um significante privilegiado marca o corpo de maneira contingente, constituindo a raiz pulsional do sintoma, antes de qualquer significação.
Sobre essa marca primeira, aquilo que é mais próprio ao falasser porém mais desconhecido por ele, se constroem as identificações aos significantes do Outro, assim como a fantasia, relação do sujeito com o objeto do seu gozo. As identificações, por um lado, e as fantasias, por outro, são eminentemente segregativas de modos de gozo diferentes daquele do sujeito. Por isso a análise, ao percorrer o caminho inverso ao da constituição do sujeito, em direção à marca de gozo do sinthoma, permite ao falasser encontrar a alteridade que o habita e consentir com a alteridade do corpo que tem.
A segregação primeira e fundamental, como diz Oscar Ventura, é da substância gozante que habita cada um. A matriz segregativa da identificação é antes de tudo contra si mesmo, na medida em que é um modo de recusa do objeto ao qual se está identificado e que é Um mesmo. O que se segrega é o gozo encapsulado na identificação, alimento privilegiado do ódio. Com a diluição das identificações, a satisfação pode separar-se do ódio e é possível reconhecer a alteridade radical do Outro: o gozo do outro não é o gozo do Um (Ventura, 2021, p. 62-3). Se o racismo é definido por Jacques-Alain Miller (Miller, 1985/2010, p. 53 e 55) como ódio ao gozo do Outro e – uma vez que Lacan define o corpo como Outro (Miller, 2011) – como ódio ao próprio gozo, o trabalho de análise é uma espécie de antídoto ao racismo.
Em Televisão, ao profetizar a escalada do racismo, Lacan acrescenta que deixar o Outro entregue a seu modo de gozo só seria possível não lhe impondo o nosso (Lacan, 1974/2003, p. 532-3). Isso nos permite pensar por que o momento em que Lacan profetiza uma ampliação cada vez mais dura dos processos de segregação (Lacan, 1967/2003, p. 263) é o momento em que ele propõe o passe à sua Escola, na versão da travessia da fantasia. A travessia das identificações é um tratamento do ódio que, sete anos depois, na Nota italiana, aparece como possibilidade de encontro de um amor mais digno. Lacan propõe então que seus congêneres encontrem, no psicanalista, portador de um desejo inédito, a marca de rebotalho da douta ignorância (Lacan, 1973/2003, p. 313-315). Tendo cernido a causa de seu horror ao saber, “tudo deve girar em torno dos escritos a serem publicados”. A escrita é o instrumento que permite a Lacan operar uma ruptura crucial com o imaginário para orientar o corpo do falasser em direção ao real (Laurent, 2021). Um real que, diferentemente do real universalizante da ciência, é um real próprio a cada um.