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NÚMERO ATUAL
24

ACORDAR PARA QUE?

2019

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Editora: ANGÉLICA BASTOS

Editorial

Cristina Frederico

A cordar para quê? Ainda é possível sonhar com um futuro, quando a realidade atual já se apresenta distópica? Gênero que ganha cada dia mais espaço, a distopia tece, ao falar do futuro, uma crítica árida aos nossos costumes e situações cotidianas. Passado, futuro e presente se comprimem diante de cenas ricamente imaginadas, realidades distantes, mas estranhamente familiares, inspiradas geralmente numa literatura de ficção científica da primeira metade do século passado ou até mesmo numa reatualização do lema no future, ironizado por uma juventude sem esperança no movimento punk. Falamos de uma visão de futuro sombrio, com apelo crescente entre os adolescentes, e que de modo especial põe em xeque tanto os limites entre ficção e realidade, quanto o que chamamos de despertar e de adormecimento na vida em vigília. Seguir esse fio nos interessa enquanto psicanalistas e é sobre ele, juntamente com o tema dos sonhos, que nos debruçamos neste número de Latusa.

É nas interrogações das funções do sonho na atualidade e dos diversos modos de despertar, tanto no sono como na vigília, que Latusa, n. 24 se constitui. Os textos recolhem na experiência clínica o lugar da surpresa e do real nos sonhos, recorte feito pelas nossas XXVI Jornadas Clínicas da EBP-Rio e do ICP-RJ. Trata-se de um esforço de elaboração para transmitir as mudanças na função dos sonhos desde a perspectiva freudiana – o sonho como via régia para o inconsciente ou o sonho tido como desejo de dormir – até as formulações lacanianas sobre o que provoca o despertar. Distâncias e aproximações entre a prática freudiana e a prática lacaniana nos impedem de fazer uma leitura linear, sobretudo quando tratamos de temas

como o do umbigo dos sonhos, tão freudiano e ao mesmo tempo tão lacaniano: um ponto que escapa ao que podemos dizer sobre o sonho e que se oferece como impossível de ser articulado pelas tramas do desejo. Determo-nos por ora nos paradoxos e nos pontos de tensão entre uma perspectiva e outra se mostra bastante fértil.

Na rubrica Percursos, Jean-Pierre Deffieux comenta o encontro com alguns analistas e, em especial, com o último, que lhe proporciona a abertura para a via do desejo, levando-o ao desejo do analista. Anne Lysy-Stevens, por sua vez, destaca em três fragmentos clínicos os usos da interpretação no trajeto da análise através de palavras que deixam marcas e incidem sobre os modos de gozo. Mauricio Tarrab destaca, na sua tentativa de diferenciar o mal-estar da época de Freud com o dos dias atuais, um fio que liga seu texto a outros dois da rubrica Distopias e mal-estar; é sua pergunta acerca das muletas que usamos diante do incurável. Patrícia Paterson, em seu instigante ensaio sobre o filme Bacurau, nos lembra que a função do sonho para Lacan seria a de um despertar para o real que envolve o encontro com algo para além da ficção. Recolhe uma das frases mais enigmáticas do filme, “estamos sob efeito de um poderoso psicotrópico”, para indicar que o uso da droga no Brasil violento e desigual

representado no filme serve mais para despertar da letargia do que para anestesiar. Ao contrário do paciente de Monica Marchese, que pede um “botão de ejetar” para se livrar do incurável da vida. Através de uma bela análise da trama distópica Bird Box, Monica pergunta se a intervenção do analista pode impedir o vetor mortífero do gozo, nomeado por Lacan de o despertar para a morte. Cristina Duba traz em seu texto reflexões enraizadas nos comentários de Jacques-Alain Miller para abordar o ressurgimento do valor da blasfêmia como contraponto à tradição iluminista. Ela nos mostra, entre outros aspectos, como a localização de um inimigo interno, com seu gozo estranho, se revela através do choque dos diferentes modos de gozo. Ainda no tema do estrangeiro, Aline Bemfica e Débora Costa apresentam o trabalho com jovens em situação de refúgio na França e tratam o despertar do sonho infantil a partir de uma discussão sobre a adolescência pensada como paradigma dos processos migratórios.

Ainda é possível interpretar os sonhos hoje em dia? Podemos perguntar qual interpretação proporcionaria uma maior abertura: a que incide sobre as mensagens cifradas, evidenciando a realização de um desejo, ou aquela que produz um corte no adormecimento e lança o analisante no ponto do sonho que o liga a algo de real. Cada analisante nos dirá qual o caminho possível, ou não. Alguns textos aqui presentes transmitem os destinos do despertar via interpretação. O de Marcia Zucchi nos diz como sua intervenção, precedida por um sonho e um acontecimento de corpo da analisante, mobilizou a libido de um corpo antes congelado. A partir das elaborações freudianas do sonho inaugural “Pai, não vês que estou queimando?”, Ana Beatriz Freire extrai uma enunciação de Freud de que o inconsciente real é o que atravessa seu enunciado e se impõe como ato. Nessa via, Mirta Zbrun faz uma curiosa articulação entre os sonhos, a estética do estranho familiar e o inconsciente real.

Ondina Machado, em A interpretação que desperta e a que faz dormir, destaca uma forma derivada dos textos poéticos, a jaculação, como uma resposta de Lacan em sua busca do que poderia produzir efeito de sentido real. Bruna Guaraná assinala que a interpretação também incide sobre algo de inassimilável e opaco do gozo, que se apresenta como cifra. Janaína Veríssimo discute as consequências de um sonho de final de análise por meio da noção de interpretação poética. Já Maria Aparecida Malveira aborda o pesadelo e seu despertar. Ao recolher textos que tentam cernir a pertinência da interpretação dos sonhos na atualidade, este número de Latusa também pode servir como um ponto de escansão para os trabalhos rumo ao XII Congresso da AMP sobre o sonho, no qual discutiremos sua interpretação e seu uso no tratamento lacaniano.

Agradecemos a Maria Josefina Fuentes pelo registro de seu testemunho de passe, que nos transmite a licença poética de inventar-se um caminho, não necessariamente aquele que se escreveu como destino. No exato momento desta escrita, estamos às voltas com a insurreição nas ruas de alguns países da América Latina e a palavra despertar é usada em um deles como corte no adormecimento da população em busca de dignidade, valor inegociável do sujeito. O destino dado a isso ainda nos é opaco, mas o efeito é o de uma multidão desperta nas ruas, ao contrário do que vemos no Brasil. Nessa via, a entrevista com Romildo do Rêgo Barros evidencia de modo cirúrgico a função do psicanalista na cidade, ao dizer que cabe a ele aprofundar a fenda entre a democracia e o fascismo. Na ocasião, nos reunimos em uma tarde na Seção Rio e tivemos um misto de conversa e entrevista com Romildo, tentando discernir qual seria a política da psicanálise.

Abrimos um importante espaço neste número para deixar marcadas nas páginas de Latusa homenagens aos colegas Carlos Augusto Nicéas e Fernando Coutinho Barros. Os autores dessas homenagens souberam, a partir de suas vivências próximas a esses dois grandes psicanalistas, transmitir o estilo e a ética de cada um deles. Agradecemos a contribuição de todos os autores para a realização de Latusa, n. 24, e a Angélica Bastos pela precisa resenha de um livro sobre o tema tão atual da segregação. Agradecemos também o vivo trabalho da Comissão de Publicação e o trabalho de editoração. Por fim, desejamos que a leitura dos textos traga ao leitor pequenos despertares.

SUMÁRIO

Editorial

CRISTINA FREDERICO

PERCURSOS

De um analista outro
JEAN-PIERRE DEFFIEUX

Poder e limites da interpretação
ANNE LYSY-STEVENS

Distopias e mal-estar – Trop de mal
MAURÍCIO TARRAB

O psicanalista e as paixões – o gosto do riso e a blasfêmia
CRISTINA DUBA

Um objeto não identificado – sonho e distopia em Bacurau
PATRICIA PATERSON

Psicanálise e migração: do exílio ao despertar
ALINE G. BEMFICA, DÉBORA MATOSO COSTA

Como pássaros na caixa – a ficção e a vida real
MONICA MARCHESE SWINERD

DESTINOS DO DESPERTAR

Quando a fantasia vacila, um corpo responde
MARCIA ZUCCHI

Freud e o inconsciente real: a propósito do sonho “Pai, não vês que estou queimando?”
ANA BEATRIZ FREIRE

A interpretação que desperta e a que faz dormir
ONDINA MACHADO

Sonho e Unheimliche: entre estética e real
MIRTA ZBRUN

O que quer o sintoma?
BRUNA MUSACCHIO GUARANÁ

O que da interpretação desperta e faz ressoar outra coisa?
JANAINA DE PAULA COSTA VERÍSSIMO

O despertar de um pesadelo
MARIA APARECIDA MALVEIRA

TESTEMUNHO DE PASSE

O rochedo e o (a)mar
MARIA JOSEFINA SOTA FUENTES

ENTREVISTA

A psicanálise e o abismo entre democracia e fascismo
ROMILDO DO RÊGO BARROS

HOMENAGENS

Carlos Augusto Nicéas
MARIA DO ROSÁRIO COLLIER DO RÊGO BARROS

Homenagem a Fernando Coutinho Barros
BOLETIM ELETRÔNICO DA EBP-RIO E DO ICP-RJ

RESENHA

Da segregação e da guerra ao novo e ao sujeito
ANGÉLICA BASTOS

RESUMOS / ABSTRACTS